segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

L. PAUWELS E J. BERGIER: «O HOMEM ETERNO»-I





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O DESPERTAR DOS MÁGICOS – OUTRA PERSPECTIVA SOBRE UM DEBATE DE MEIO SÉCULO(*)

Alguns movimentos, centrados na Europa à volta da primeira guerra mundial, exerceram influência mais ou menos duradoura na inteligência ou mentalidade dos principais responsáveis pela história feita e desfeita. Fraca influência, é certo, pois os debates de ordem intelectual deixam sempre a perder, em colorido e sangue derramado, às guerras armadas; mas, de qualquer maneira, debate que interessa ao homem do nosso tempo e mundo, mergulhado nas suas próprias contradições e procurando superá-las.

Primeiro o futurismo, que desaguou na pintura e na baixa política, depois o dadaísmo e o micróbio devorador que inoculou, depois o surrealismo - que sustentou durante 40 anos a vanguarda do debate - quer se considerem sub-produtos históricos ou contributos para a marcha do progresso humano, todos esses movimentos contribuíram para modificar a óptica com que o homem se examina a si próprio e desenhar-lhe simultaneamente a fisionomia dilacerada, ambígua, assimétrica.
O clássico e o moderno, o académico e o antiacadémico, o retrógrado e o revolucionário - eis os termos antitéticos mais comuns em que o debate se formula. Depois do surrealismo, nenhum movimento parecia com violência capaz de o eclipsar, ainda que momentaneamente. O Despertar dos Mágicos (1) - manifesto do «realismo fantástico», posto à prova em 15 volumes publicados (até agora, Abril de 1964) da revista Planète, dirigida pelos autores do livro, Louis Pauwels e Jacques Bergier - embora se diga inspirado no surrealismo parece a primeira tentativa lograda para desviar - resta saber se para trás, se para diante - os postulados fundamentais deste movimento.
Não compete ao observador imparcial tomar partido por nenhum dos «ismos» mas apenas tentar saber o que pretende cada um deles. Registe-se, pois, o que nas linhas gerais caracteriza o «realismo fantástico», já designado também, em número da Planète, «humanismo evolucionário», vertigem terminológica que não deve assustar-nos nem distrair-nos do fundamental.
Na opinião dos autores, o debate sofre de um defeito-base: ter sido conduzido, regra geral, por pessoas de exclusiva formação literária, ignorantes ou desatentas do que tem acontecido, de há meio século para cá, no campo da ciência e da técnica. A revolução operada nos domínios da física e da matemática, por exemplo, faria empalidecer o que de pretensamente revolucionário tem aparecido no domínio das letras e das artes, incluindo nestas a filosofia... No dizer dos autores, o existencialismo seria, entre outras coisas, simplesmente anacrónico, e nada o justificava numa época em que, depois de alteradas as estruturas da matéria, se prevê, para muito breve, uma alteração ainda mais radical, mais «fantástica» nas estruturas mentais.

UM DESLUMBRADO PANORAMA

Os autores confessam-se maravilhados perante a revolução científica e técnica, e apresentam-nos um deslumbrante, um deslumbrado panorama, parecendo esquecer tudo o que ao progresso técnico se fica devendo em matéria de abjecção e reaviltamento do homem. Por muito «contemporâneos do futuro» que os autores se queiram e nos queiram, por muito que estejamos concordes em que a maior parte das filosofias em uso são anacrónicas, não nos podemos desligar, existencial e historicamente, de um passado ainda presente, nem vemos como é possível ignorar a história e o homem historicamente situado; a não ser por um passe de «mágica», como é possível eliminar duas dimensões do tempo - passado e presente - levando apenas em conta uma terceira - o futuro? Rejeitando os humanismo clássicos e contemporâneos - como parecem fazer os autores - creio que fatalmente se cai no vício desses humanismos que é o de, baseados numa ideia-imagem do futuro - idealizando-a - sacrificarem os homens reais e concretos do presente que em dor e sofrimento se vai fazendo, com a lentidão das torturas, passado.
Rejeitando os humanismos, porque - segundo os nossos autores - eles já não servem ao homem «transmudado» do futuro, - está-se inevitavelmente a engendrar (a necessidade de) outro humanismo, visto que, não existindo o homem transmudado (já, aqui e agora, mas no futuro, apenas no futuro), existe hiato e a necessidade de preencher com promessas, teorias, hinos humanistas, esse hiato, afirmando-se então, necessariamente, um factor comum a todos os humanismos: a ideia-crença no futuro, a ideia-imagem de um futuro. Para o homem historicamente situado, não é possível anular o tempo; anular o tempo é supor idealisticamente um homem transhistórico, a-histórico ou cósmico, o que, a ser possível, não o será nunca por via de nenhum humanismo mas exactamente do que os humanismos excluem: o místico, o mítico, o mágico.
Ora se no dizer dos autores as hipóteses mística, mítica e mágica também estão ultrapassadas, a dificuldade persiste: saber em que humanismo vai encarreirar este «realismo fantástico», ou que novo humanismo inventará.
Excluída a hipótese em que o indivíduo se basta e «resolve» a si próprio (ou julga resolver, e isso é outra questão...) o hiato entre homem-indivíduo e homem-espécie subsiste e com ele o hiato entre necessidade e liberdade, hoje e amanhã, tempo e eternidade, situação cósmica e situação histórica, consciência individual e consciência-da-espécie, o que é e o que vai ser, o que há e o que vai haver, etc., etc. Enquanto este hiato existir, a necessidade de um humanismo subsistirá também. E com ela a necessidade de uma ideia-crença (mais crença que ideia, mais fé que razão, mais mística que lógica) do futuro; aliás, é pelo tipo de fé adoptado e pela imagem do futuro idealizada que os humanismos diferem e se distinguem.
Quando for possível a síntese do espírito poético e do espírito científico, assistiremos, de facto, a uma solução nova, a uma solução moderna. À primeira vista O Despertar dos Mágicos pretenderia realizar essa síntese e obter essa solução, mas depressa acaba por desistir, optando pela exclusividade da ciência contra a poesia, da técnica contra a magia, da razão contra a mística, da lógica contra o mito.
Ora todos os humanismos que pressuponham a exclusividade da razão (incluindo este «humanismo evolucionário») contradizem-se na medida em que, excluindo as soluções por via individual (mítica, mágica, mística) se vêem contudo na contingência de propor uma fé e uma imagem-crença que accione essa fé, imagem que só poderá ser dada pela imaginação criadora ou espírito poético e fé que só pode inspirar-se na mística de todos os tempos e lugares.
Tentando os autores, por exemplo, reabilitar certos aspectos da alquimia tradicional, acabam por adaptá-los e por lhes sobrepor a ciência química moderna. O espírito mágico ou poético não teria uma função autónoma, soberana e liberadora na marcha do progresso humano, mas sería, segundo a tese positivista clássica, um estádio primitivo e ultrapassado desse progresso.
Deve notar-se que desta autonomia do espírito poético fez o surrealismo um dos seus dados fundamentais.
No capítulo sobre o nazismo, chega a insinuar-se o potencial destruidor da iniciativa mágica. Não só se ignora, nesse capítulo, a distinção entre magia branca e negra (se é que alguma delas foi, como os autores pretendem, praticada pelos chefes nazis, inspirando o nacional-socialismo) como se repete, uma vez mais, a clássica confusão entre o plano da acção de raio ou competência meramente individual (acção poética, lato senso) e o plano da acção que compete à poderosa máquina que é um estado totalitário moderno, equipado com todo o arsenal destruidor, este certamente de origem técnica e não mágica...
Nestes pontos-chave o livro pouco adianta, ainda que apresente sugestões de interesse. No fundo, trata-se talvez de uma apologia mal disfarçada da ciência e da técnica, à boa maneira iluminista, a que se acrescentam uns circuitos aparentemente mais ousados por campos que técnicos e homens de ciência geralmente subestimam ou simplesmente ignoram.
«O sábio» - escrevem os autores à página 60 da tradução portuguesa - «é a personagem chave da aventura em que a humanidade está empenhada».
À maneira de H.G.Wells, os autores fazem do sábio a figura mártir da nossa civilização, esquecendo que o sábio, dentro da lógica ou inércia da cultura ocidental, não pode considerar-se inocente do que faz o político; e que colabora na autodestruição de uma «civilização à prova»; e que está dentro dela, nada podendo contra ela; e que, talvez acuse o político e queira lavar dai as suas mãos, mas não está inocente.
O sábio não poderia ser de modo nenhum a personagem chave da aventura em que se encontra comprometida a humanidade, porque nunca terá, enquanto sábio, autonomia suficiente relativamente à máquina ou engrenagem cultural que ajuda a accionar, a pôr em movimento e a autoflagelar-se, nem poderá dar uma ideia ou imagem aceitável, suficientemente complexa, clara, precisa e eficaz do futuro, nem criar a crença ou fé que a dinamize.
O «futuro» que em O Despertar dos Mágicos se trata é, apesar de tudo, mais honesto e mais promissor do que tudo ou quase tudo o que, clássicos e modernos, incluindo as science-fiction, (muito elogiadas pelos autores) nos vão dando como exegese do futuro, conhecimento do futuro, antecipação do futuro. Entre o «industrial do futuro» e o «visionário do futuro», um terceiro homem terá de aparecer, capaz de não colaborar nem com um nem com outro e com ambos ao mesmo tempo.
Resta perguntar até que ponto «O Despertar dos Mágicos» colabora, a pretexto de integrar na mentalidade humanística uma mentalidade mítica, no mito contemporâneo do Progresso e nos que nele se apoiam: Humanidade, Raça, Pátria, Partido, Estado, Ciência, Razão, etc. E até que ponto o «realismo fantástico», esquecendo a realidade se faz cúmplice do espírito de abstracção do mais descabelado idealismo, tal como todos os humanismos que, proclamando a grandeza e glória de uma Ideia - o Homem, a Humanidade - vão escamoteando a miséria e abjecção das realidades vivas que são os homens reais e vivos. O Homem, esse infinito é o título da terceira e última parte do livro: ora exactamente por causa desse «infinito» é que no finito se tem feito até agora a infelicidade dos homens finitos e é à grandeza do Homem com H maiúsculo que todos os tiranos vão buscar alento para garantir discricionariamente o poder sobre os homens, que acabam sempre por considerar nada grandiosos em si mesmos, isto é, individualmente. Afirmar que o Homem — a espécie, a Humanidade — é grande, é um infinito, pode servir para santificar e legitimar toda a classe de sacrifícios impostos aos homens de hoje, alegando-se com argumentos deste tipo: «é a espécie que importa, sacrifique-se ou faça-se desaparecer o indivíduo, palavras alarmantes mas muito parecidas às que os autores em dado ponto escrevem: «Mas a noção de indivíduo talvez seja uma noção pueril, e a tradição, com as suas lendas, talvez se exprimisse em nome do conjunto humano, em nome do «fenómeno humano...» (pág. 489 da tradução portuguesa). Ou: «Com certeza, o Eu psicológico, aquilo a que chamamos personalidade, estaria em vias de desaparecer. Mas não cremos que essa «personalidade, seja a última riqueza do homem. Neste ponto, creio que somos religiosos. É o signo da nossa época, o facto de todas as observações activas se rematarem numa visão de transcendência. Não, a personalidade não é a última riqueza do homem.» (pág. 541).
Resta perguntar ainda até que ponto estas quinhentas páginas sem dúvida apaixonantes, contribuirão para lançar a ponte sobre o nada, superar o niilismo, desabismar o homem do homem e a que ponto a esperança deste livro deixa de ser a fácil esperança de todos os humanismos (a esperança de todos os falsos profetas, optimistas e mistificadores que à esperação ou expectativa dos homens, à angústia, à fome, à solidão, ao desamparo e à velhice, à pobreza, à doença e à guerra, ao tédio quotidiano e ao quotidiano sofrimento de mil e uma alienações, ao terror e horror respondem com promessas hipócritas, hinos retóricos, «amanhãs que cantam», etc., etc.) para ser simplesmente o respeito pelo homem, quer ele tenha ou não saída e solução, a «difícil esperança» que, apesar de tudo e contra tudo, é ainda amor, a única saída para o que porventura saída não tem.
Resta perguntar, enfim, se entre um abismo e outro abismo — o mágico que transplantado do universo do Individual para o monstro colectivo do Estado pode conduzir, pela anulação da ideia do futuro, às magias totalitárias, e o científico, que pela ideia do futuro, exclusivamente racionalista, conduz os irracionalismos políticos onde muito bem entenderem — resta saber se, entre Cila e Carlbdes, entre um e ou perigo, o livro se manteve ao menos seguro, sem naufragar em nenhum dos abismos. E se dele não teremos a dizer que é mais um livro de esperança para desespero dos homens.
(1) - - - -
(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no semanário «Jornal de Letras e Artes», 1964
(1) «O despertar dos Mágicos» de Louis Pauwels e Jacques Bergier - Ed. Bertrand, Lisboa, 1964 - trad. de Gina de Freitas.

planète-enc-bg> quinta-feira, 5 de Setembro de 2002


BIBLIOTECA DO GATO

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