segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

«PLANÈTE» E PENSAMENTO PLANETÁRIO-II

planète-8> o movimento das ideias - notícias do futuro

«PLANÈTE» E OS COMETAS DE CAUDA... (*)

A revista «Planète», que se edita em três línguas (francês, italiano, espanhol), e em Janeiro de 1955 atingia a tiragem de 500 mil exemplares (só para a Europa, edição em francês), tem conhecido o prestígio intelectual que merecia e o triunfo comercial que secretamente ambicionava. Um pouco por motivos intelectuais, um pouco por dor de cotovelo, um pouco também porque ninguém está isento de culpas e críticas, a equipa «Planète» ao mesmo tempo que foi criticada com aspereza pelos surrealistas, não agradou igualmente às colunas racionalistas, que, após alguns meses de prudente expectativa, desencadearam uma feroz ofensiva.
A operação anti-«Planète» continua mas a equipa não mostra grande perturbação, antes pelo contrário: continua a pôr em prática, também através de livros luxuosos, graficamente magníficos, um programa mais pretensioso que ambicioso, programa que só na aparência e de início ameaçava subverter interesses criados.
Com pouco por onde escolher, foi este possivelmente um dos factores que determinaram a sua explosiva popularidade. A maioria lançou-se na «grande aventura», à cadência de 6 francos por bimestre, o que para o francês médio seria módica obrigação contraída para em troca rejuvenescer o espírito, actualizar os conhecimentos, rebrilhar de erudição.
Quem não havia de se tentar?
Fora da França. também. E a tiragem subiu em vertical, depois de os primeiros oito números da revista se terem esgotado. Aumentaram as vendas, aumentaram os lucros, e em pouco mais de um ano a equipa «Planète» transformou-se numa poderosa empresa editorial, obrigada a satisfazer, de dois em dois meses, as exigências ou ilusões de 500 mil leitores.
Em parte é este êxito fulgurante que os detractores lhe não perdoam. Mas a bola de neve já não pode parar e, entre vários fogos, oscilando à superfície das contradições sem as viver e sem as superar, «Planète» ficará apenas o estável monopólio que já é, o super-magazine que agrada a gregos e troianos, que adia e distrai, que espera e promete, quer os racionalistas façam fogo contra o seu irracionalismo, quer os irracionalistas a metralhem por causa do seu racionalismo.
«Planète» ilustra e resume a história do planeta e suas planetárias questiúnculas.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal diário «República»(Lisboa) , em 24/8/1965

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O SURREALISMO E A REABILITAÇÃO DO FANTÁSTICO

Fenómeno relativamente moderno (apenas com vinte e tal séculos de existência), específico do pensamento racionalista, das regras lógicas, dos princípios imutáveis da razão, e mais tarde da civilização mecânica ou industrial, o homem cindido ou homem profano não compreende o «fantástico» e as obras que aparecem com o rótulo de «arte fantástica», constituem apenas, na sua maioria, produtos ou subprodutos de uma mentalidade atrofiada, sem inventiva nem poder imaginativo, devendo nós encarar a literatura que se designa de «fantástica», como um resíduo, hoje insignificante, de manifestações muito mais antigas, um dos poucos sinais que restam para avaliar, em certa época da história, as relações do homem com o universo, a sua participação e o seu enquadramento harmónico nas leis da Natureza.
Subjectivo e objectivo, visível e invisível, noite e dia, vigília e sonho, micro e macro-cosmos - eis algumas das antinomias que para os homens de certas épocas, lugares e mentalidades não existiam. Assim como não existia o «destino», nome que mais tarde seria dado apenas à ignorância das leis que regem o mundo dos homens em perfeita consonância com o mundo das coisas. Por desconhecerem essas leis, muitos classificam de loucuras tudo quanto foge à lógica comum, esquecendo-se de que rigorosas leis regem a imaginação criadora e rigorosos limites definem o fantástico.
Esquece o homem cindido, que sair da zona onde reinam soberanamente os princípios vectores da razão (identidade, causalidade e contradição), princípios directores do conhecimento científico, nem sempre significa cair no arbitrário puro, no delírio fantasista, no vácuo da irresponsabilidade. Não há dúvida que a linguagem dos símbolos se assemelha muito à linguagem dos loucos mas nem sempre um estado de alienação mental se resolve em obra de arte e nem sempre uma obra de arte «fantástica» resulta de um estado demencial. O único ponto de contacto da arte fantástica com a arte dos loucos, dos primitivos e das crianças, é afinal um ponto negativo: a sua arte, tal como a arte fantástica ou pensamento analógico, não conhece e não obedece à lógica comum dos adultos civilizados considerados normais e mentalmente sãos.
Após muitos séculos de descrença e descrédito que, pretensamente cépticos, apenas acrescentaram a uma superstição outra superstição (à superstição e dogmas da fé, a superstição e dogmas da razão), o fantástico na arte e na literatura viu-se a pouco e pouco reabilitado. Lentamente, muito lentamente, até os mais sisudos e de bom senso (sempre os últimos a ver as sensatas evidências) resolveram levar a sério o «fantástico». Talvez porque os surrealistas o andem a proclamar há quarenta e dois anos.Sabe-se hoje que ao homem nada é impossível e acreditar no fantástico não significa já acreditar em petas e anedotas de bruxa, mas acreditar n' «o homem, esse infinito», de que falam pessoas tão respeitáveis como o senhor Teilhard de Chardin.
Concluíram eles que a realidade hoje é que é fantástica. Comparadas ao que o homem já conseguiu e ainda pode conseguir, na exploração do mundo visível, nada significam já as mais ousadas ficções literárias. Júlio Verne viu-se ultrapassado em menos de um século pela realidade e as fantasias ou antecipações por ele formuladas parecem-nos hoje, de tão ingénuas, quase ridículas. Acreditar no fantástico é, assim, para muito boa gente, acreditar no progresso, na infinita capacidade de progresso do homem e de modo algum preconizar um retrocesso.
«Oh minha alma, não aspires à eternidade mas esgota o campo do possível!».
Este pensamento de Píndaro, que Camus escolheu para epígrafe do seu ensaio sobre O Mito de Sísifo, poderia constituir o lema de quantos perfilham a crença na evolução humana, os que se encontram na vanguarda de um «realismo fantástico» ou «humanismo evolucionário», os «contemporâneos do futuro», os que, parafraseando Novalis, afirmam: quanto mais fantástico mais real. Porque o conhecimento da realidade, conhecimento que caminha através de tantas dificuldadas e tacteios, nunca será completo nem esgotará toda a complexidade do universo sem ir além daquilo que nos dá o conhecimento positivo, científico, experimental. Operação de vanguarda do conhecimento racional, a hipótese ou intuição comanda todas as outras operações da investigação científica. A imaginação estimula e fecunda a inteligência.
Na verdade, há quarenta anos que os surrealistas batalham para conseguir esse objectivo, para desabismar o homem do homem, para efectivar um verdadeiro humanismo dialéctico, para reunificar o homem cindido ou dividido, para descobrir o ponto central onde todas as antinomias se fundem. E há quarenta anos também que eles reclamam a autonomia do imaginário, do pensamento analógico relativamente ao pensamento lógico, do simbólico frente ao realista. E há quarenta anos que eles afirmam que surrealidade é apenas e unicamente a realidade total do homem total, a realidade do homem não alienado, do indivíduo religado ao universo e às forças cósmicas, ele próprio uma força da Natureza; não sendo, portanto, possível nem desejável que se exclua do visível o invisível, do possível o impossível, do real o seu lado mais real chamado fantástico.

O FANTÁSTICO SURREALISTA E A ANTECIPAÇÃO ABJECIONISTA

Embora com alguns pontos de contacto, o “fantástico” e a “antecipação” têm, cada um à sua parte, características próprias que os separam e distinguem. Do “fantástico” à “antecipação” vai uma distância maior do que se supõe, distância que pode ficar definida pela que separa o “surrealismo” e o “realismo fantástico” do “abjeccionismo”.
Enquanto os dois primeiros movimentos participam de uma visão romântica e optimista da história (e do futuro) as antecipações abjeccionistas caracterizam-se fundamentalmente por uma consciência crítica aguda da história e uma denúncia realista dos factos. Sem expansões vitalistas, a antecipação “abjeccionista” desmonta o mecanismo da abjecção que caracteriza as sociedades presentes e próximas futuras.
Nas novelas e novelistas de “antecipação” há implícita uma “filosofia da História” que não tende, regra geral, para o cor-de-rosa. Ao apresentar as sociedades, não como se encontram (o estádio crítico ou de putrefacção em que se encontram) mas num estado paroxístico e definitivamente concentracionário, estas novelas e estes novelistas desempenham uma missão de alarme e aviso com certa função didáctica...
A verdadeira literatura de horror é hoje a de antecipação e não a que se filia nos vampiros domésticos da tradição gótica; esta literatura de antecipação, também rejeita, explicita ou implicitamente, as antecipações optimistas clássicas: Campanella, Platão, Júlio Verne e Tomás More; não se filia sequer em Edgar Poe (que deu origem a um outro tipo de raciocínio romanesco: a novela policiária) mas sim em Franz Kafka, o primeiro grande autor de antecipações abjeccionistas na literatura moderna.
As chamadas “fícções científicas”, que se caracterizam por uma inconsciência crítica da Abjecção e portanto por uma doce visão do futuro, entroncam directamente no Júlio Verne e na tradição feérica que ele renovou.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal diário «República» (26/3/1966) e no suplemento literário do «Jornal de Notícias» (Porto) em 7/4/1966

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