sexta-feira, 20 de julho de 2012

AFONSO CAUTELA RESPONDE A FERNANDO BARROS

polémica-63- scan domingo, 23 de junho de 2002

FILOSOFIA E SURREALISMO:
RESPOSTA DE AFONSO CAUTELA A FERNANDO BARROS (*)

(*)Este texto de Afonso Cautela respondia a um artigo de Fernando Barros, aparecido na 1ª página do semanário «Jornal de Letras e Artes», 6 de Novembro de 1963, intitulado «A Filosofia não é um Realismo»


De Afonso Cautela recebemos, com o pedido de publicação, o seguinte esclarecimento, a propósito de um artigo de Fernando Barros:

Ajudado pelo que li dos filósofos mais ou menos surrealistas e dos surrealistas mais ou menos filósofos, tive o atrevimento de publicar, neste «Jornal de Letras e Artes», um comentário em torno de filosofia e surrealismo, comentário que foi honrado com outro de Fernando Barros, neste mesmo jornal, dia 6 de Novembro último.
Pelo que pude compreender das suas palavras, de imensa profundidade especulativa e, por isso, um tanto confusas para «a quase total incapacidade especulativa de A. C.» deduzo que será bastante difícil travar um diálogo proveitoso. F. B. e A. C. não divergem apenas na maneira de ver (de pensar), o que seria óptimo e poderia dar lugar à útil controvérsia; divergem também, e isso é que é pior, na maneira de ser, no carácter.
Pelo que pude concluir das suas linhas, parece-me que:
a) enquanto F. B. se preocupa, com ar de mestre, em dar lições - A. C. nunca se preocupou nem se preocupará em dar lições a ninguém e quando muito limita-se a recebê-las, ainda quando as não pediu e não tem outro remédio;
enquanto F. B. se ocupa a apontar inexactidões» (que não aponta) e «erros» (que vai apontando ao longo de seis colunas e tal) da minha prosa, e pretende – textualmente - «destruir, ainda que sumariamente, determinadas afirmações» de A. C. - digo-lhe que, mesmo sumariamente, não me senti nada destruído e que jamais me ocuparia de apontar erros e inexactidões nos textos dos outros, muito menos no artigo ou artigos de F. B., onde inexactidões e erros é o que não há-de faltar também;
enquanto F. B. salienta a «quase total incapacidade especulativa» de A. C., pergunto a F. B, duas coisas e peço-lhe outras duas; pergunto a F. B.:
- ou acha que vale a pena perder tempo e artigos com este seu desconhecido admirador (e aluno involuntário), e nesse caso porque não pergunta muito concretamente, muito claramente o que quer, para eu concreta e claramente lhe responder ?
- ou para avisar os leitores das inexactidões, erros, desleituras, faltas de autoridade, gralhas etc., do A. C., por que malbarata assim o tempo e tanta capacidade especulativa ?
Agora as duas coisas que peço a F. B.:
- que para a próxima vez a sua tão ampla capacidade especulativa ande a par da sua capacidade apreensiva da incapacidade dos outros e da sua capacidade expressiva;
-que para a próxima, a sua ampla bossa filosófica se revela não só em profundidade mas também em claridade, que é virtude sobejamente cartesiana, ergo filosófica.
Satisfeitas estas condições mínimas, eu preferia, se for caso disso, que gastássemos tempo e colunas, não a mostrar os erros um do outro mas precisamente a errar, no sentido filosófico da palavra errar, a errar na procura do caminho ou caminhos para a verdade, convidando os leitores que quisessem fazer-nos companhia a errar também, por aqui, a dialogar, virtudes altamente filosóficas estas duas - errar e dialogar - que convém ir praticando conforme é higiénico, salutar, democrático. Aliás só por isso - para errar e dialogar - me permiti anteontem algumas irreverências à filosofia e me permito agora, em resposta a F. B., algumas irreverências mais.

b) enquanto, por motivo da alínea anterior, F. B. empunha o sacramental ponteiro do professor que ensina e a palmatória do juiz que castiga, - A. C., embora não lhe tivesse encomendado o serviço nem o sermão, humildemente ouve a lição mas humildemente se recusa às palmatoadas; e ouve a lição, pois é tudo quanto pode fazer, numa emergência assim, o aprendiz que sempre fui, sou e serei, não só da filosofia mas de coisas bem mais gratas que filosofia e filósofos (ainda por cima e às vezes, caturras).

c) enquanto, ainda por força das alíneas transactas, F. B. se auto-confere a máxima autoridade em matéria filosófica, autoridade que não me interessa refutar, confessa-se A. C. o ignorante que nunca deixou de se confessar nas já algumas ocasiões em que outros mestres, de cátedra fixa ou ambulatória, lhe saíram ao caminho, sempre e sempre com o ponteiro da autoridade nas unhas, a palmatória do castigo em riste, o fel no coração.

d) quanto a confusões, peço licença ao mestre mas F. B. é que ameaça lançar tudo na confusão:
1º) confundindo o meu artigo e voltando-o do avesso, artigo onde, se nem tudo era claro, F. B. conseguiu pôr tudo ainda mais escuro;
2º) contribuindo com a sua desmedida capacidade especulativa e sua terminologia filosófica de especialista, para deixar a zero os que ainda não estavam e abaixo de zero os que já estavam.
Tenha paciência F. B. mas olhe que até para confundir é preciso talento.

e) Enquanto F. B., por tudo isto e concluindo, mostra que a sua maneira de ser é em tudo antípoda da minha, - A. C. propõe:
1.°) que F. B. mande imprimir fotocópias, muitas fotocópias do seu diploma em catedrático de filosofia, diploma que desde logo lhe conferirá a autoridade de magister dixit e o poder de examinador infalível que em tão boa ou má hora veio malbaratar comigo, (nas colunas de um jornal que é para ser lido por todos e nem só por catedráticos), fotocópias ou provas que logo providenciará para que sejam divulgadas em todos os órgãos de informação do país;
2º) que só depois disto valerá a pena encetar um diálogo entre os modos de ver e pensar de F. B. e A. C., já que tão incompatíveis se me afiguram (e indialogáveis) os modos de ser.

II

Agora as divergências que me parece haver, quanto a modos de ver, entre F. B. e A. C.:

f) Enquanto F. B., directa ou indirectamente, mostra tomar partido pela filosofia em geral e por uma sacola filosófica em particular - A. C., que não tem partido, nem clube, nem sacola, pede-lhe que concretize melhor o partido, clube ou escola filosófica em que milita.
Esclareço entretanto que o meu partido não é nem seria jamais o dos sobresuficientes, venham eles em nome da filosofia - que é a forma mais salgada de sobresuficiência - ou em nome do que vierem.

g) Enquanto F. B., em vez de apresentar o seu conceito de filosofia, se limita a transcrever (de onde!) o que Hegel «supõe» ser filosofia - A. C. dir-lhe-ia (repetir-lhe-ia) o que supõe ser filosofia caso F. B. se dignasse primeiro dizer o que, ele e não o Hegel, supõe que seja. A menos que ele e o Hegel sejam ou pensem o mesmo. Neste caso que o diga.

h) Marginalmente, F. B. parece querer que a filosofia seja uma actividade especializada, uma ciência particular, semelhante à física e à matemática. Pelo menos deixa transparecer isso, quando diz que para falar de filosofia é indispensável uma linguagem técnica e tão especializada como a daquelas ciências.
Enquanto F. B. parece, com isto, perfilhar o conceito de filosofia como ciência e enquanto eu não lhe contesto tal direito se de facto assim é, - A. C. dir-lhe-ia que não é esse nem outro o meu conceito de filosofia. Mas, para lhe dizer qual é, gostaria que primeiro F. B. me esclarecesse do seu. Até porque já o disse no meu artigo e apenas me compete repisar, re-esclarecer o que lá ficou. Quem precisa de concreta e claramente apresentar uns conceito de filosofia, é portanto F. B. que diz tê-lo e não A. C. Dou-lhe a prioridade que lhe pertence.
1) Enquanto F. B. parece não deixar dúvidas de que alinha numa escola filosófica definida, - A. C. uma vez mais declara não ter escola, clube nem partido filosófico, pedindo no entanto a F. B. que explique o dele, que nomeie o dele, que defina o dele, pois é impossível que um filósofo tão às direitas como F. B. não tenha um ismo de estimação: neo-positivismo, neo-hegelianismo, neo-tomismo, marxismo, personalismo, existencialismo qualquer coisa enfim que lhe fique bem e a gente a saber para ficarmos também muito satisfeitos.
Se acaso é pelo neo-positivismo ou pela filosofia como ciência que torce (e ora nos leva a crer que sim, ora nos leva a crer que não), aproveito para lhe dizer que:
1º) um filósofo que assim entende a filosofia, não deve descer a falar com ignorantes de tão pouca capacidade especulativa;
2º) não deve sequer usar a linguagem de toda a gente, que é esta - a das palavras - mas a linguagem adequada: álgebra, logística, ou lá o que é.
E se F. B. me permite uma brevíssima incursão no «moi haissable», ai está, lhe digo, uma coisa que os jovens neo-positivistas meus amigos nunca me souberam explicar e que talvez F. B., que para mestre só lhe falta a cátedra (ou talvez nem), saiba: porque continuam a usar a linguagem das palavras, se a ciência da filosofia (dizem-no eles) tem de usar linguagem de rigor e essa só pode ser a linguagem matemática?
Afinal, quem tinha mais motivos para sentir a própria casa invadida, seria o escritor quando os filósofos se metem a escrever com palavras, pois estas, tenham os filósofos santa paciência, foram, são e hão-de ser sempre o domínio único do escritor. Afinal era o escritor que se devia queixar do filósofo e não, como acontece tão lamuriosa e insistentemente, o filósofo a queixar-se do escritor. Ora bolas para os filósofos.

j) Enquanto F. B. considera que pensar é actividade tão especializada que só os homens devidamente aparelhados (diplomados!) para tal estão por ele autorizados a pensar, - A. C. pensa (ousa pensar, se desta vez, e só por esta vez, F. B. o autoriza a tanto) que o pensamento, na acepção kantiana, por mim citada no outro artigo, de «conhecer por conceitos», não deve nem pode estar condicionado pela autoridade ou autorização de ninguém, venha essa autoridade ou autorização em nome do uma filosofia, de um estado, de um partido, de uma igreja, de uma escola.
Enquanto o critério de F. B, sobre o pensar e a liberdade de pensar se me afigura assim um tanto autoritário (para não dizer pior) - A. C. confessa não perfilhar um tal autoritarismo nem consentir o dos outros quando sobre o pensamento dele se queiram, discricionariamente, exercer; bom ou mau, fraco ou forte que seja esse pensamento e haja ou não haja um polícia F. B. a mandá-lo calar, a mandá-lo dis-pensar.
1) Corolário da anterior, uma coisa há bastante inquietante no discurso de F. B.: censura-me ele o «ter opiniões».
Seja qual for o conceito filosófico de opinião, acaso ter opiniões será, mesmo (repito) do ponto do vista mais estreita e estreitamente filosófico, algo de condenável ou censurável?
Se F. B. acha que sim, - A. C. acha que não. Ter opiniões, desde que a verdade não seja única, ou imposta como única, parece-me um elementar direito do homem, ainda que não venha exarado na deontologia para uso dos bons costumes universitários. Ter ideias, pensamentos, opiniões - mas acaso F. B. nos nega também esse direito? Era só o que faltava...

III

Enunciado, nestes preliminares, o diferendo entre as maneiras de ser e de ver de F. B. e A. C., vejamos o que é necessário, para não alongar muito, deixar ainda expresso de modo a obviar a futuras maiores confusões.
De um ângulo escolar ou escolástico, nada mais fácil do que definir. Definir filosofia ou seja o que for. Definir, para o mestre que ensina e o aluno que decora a lição, é fácil.
Para um espírito livre, porém, definir é o que há de mais difícil, mas começar por reconhecer a dificuldade eis, desde logo, um acto bastante filosófico, suponho eu.
Reconhecer a dificuldade não foi mais nem menos do que fiz no meu artigo. Talvez o fizesse em termos menos convenientes e a partir de postulados equívocos. Admito. Mas dado que se tratava de comentar um texto de Schuster e Legrand, pareceu-me oportuno lembrar o artigo deste último que se intitula, como geralmente os surrealistas sabem, Le Surréalisme est-il une philosophie? Foi este título um ponto de partida (mau ponto de partida, admito) de onde tentei apanhar o fio à meada, bastante empeçada, confesso, do referido folheto. Apenas apontei o que de «função filosófica» (entre aspas) pudesse haver no surrealismo que, organizada ou desorganizada, o pudesse aparentar a uma filosofia ou a um filosofar.
Não falando das inúmeras gralhas que inçaram o artigo (e não quero desculpar a possível obscuridade do que disse com a nuvem de gralhas que o sobrevoou), é bem possível que a intenção de pôr em claro e em ordem o opúsculo editado por Cesariny tivesse resultado malograda.
Mas bem: não peço a F. B. desculpa do malogro, peço apenas que não veja mais nem menos do que lá havia. E o que lá havia, vou resumi-lo no mínimo possível de palavras.
1-Não havia lá, é claro, uma derramada simpatia pela filosofia mais ou menos universitária e arredores, mais ou menos oficial e oficiosa; não havia zelo por nenhuma ontologia ou ideologia; e, mesmo por aquilo que me parece restar com utilidade na filosofia - a sua função de método, de crítica - também não estava obrigado a nenhumas reverências especiais.
Posso agora dizer a F. B. que a filosofia me parece útil unicamente como crítica e depois como método: como análise (pensar, creio eu, aprende-se, não se ensina) e depois como esquema aplicável à acção política. Inspirar, conduzir, planear a acção - eis a função que me parece fundamental na filosofia. Tal função, no entanto, dada como aceite, não vinha ao caso discuti-la porque no meu artigo se punham em causa outras filosofias, outras funções que da filosofia se querem conferir: as ontologias e as ideologias. Contra estas e contra estas o artigo se dirigia.
Particularmente em relação às ontologias, quis eu dizer que o pensamento lógico-filosofia como ciência, única que, como digo, me parece ter alguma utilidade e função - exercido sobre o que escapa ao controle ou organização da lógica, resulta inútil, ridículo, digno de gargalhada e às vezes socialmente perigoso.
Não que me recusasse a pisar terreno «metafísico» mas para pisar esse terreno são necessários meios adequados, meios que apenas posso resumir numa palavra: Poesia, sendo os filósofos com seu quê de poetas e os poetas com seu quê de filósofos (esses que os professores não sabem, aflitos, onde catalogar) os que, na fronteira dos géneros, na fronteira das artes, na fronteira do conhecimento, se me afiguram os espíritos verdadeiramente revolucionários, os tais que vinha à baila tratar, a propósito de um folheto com o título A Filosofia e a Arte Perante o Seu Destino Revolucionário. Quis eu dizer que os espíritos criadores, os que imprimem a marcha revolucionária ao espírito humano, saem dos géneros, das ordens, das ortodoxias, das instituições, embora, como também disse, os historiadores desta e daquela especialidade, ordem, instituição ou ortodoxia os façam figurar nesta e naquela história.
2 - Falar da filosofia e da arte perante o seu destino revolucionário conforme o mote dado pelo folheto em causa, não é preconizar o famoso acto surrealista puro - atirar na rua e ao acaso - quando se trate de pensar o homem que nessa rua passa, as suas relações sociais e os propósitos de transformar as condições materiais dessas relações. Poesia é uma coisa, Política é outra.
A rasteira, aliás, é muito comum em França, lançada principalmente pelos impenitentes inimigos do surrealismo; aqui, e para pasmo dos da casa, a rasteira é utilizada agora por alguém que parece mais amigo do que inimigo do surrealismo.
Não creio, no entanto, que F. B. tivesse usado o expediente por má fé, confiado no olho comum daqui. Não creio. Creio, sim, que ele entendeu ou virá a entender o plano em que unicamente se poderia formular e discutir a pretensa acção revolucionária do surrealismo, ou da filosofia e da arte vistas num conspecto surrealizante: e é esse plano, não o da dialéctica de classes, não o da transformação da mentalidade que antecede, acompanha e se sucede, no tempo, à outra transformação.
O pensamento filosófico ou científico, até onde serve para conduzir, inspirar, planear e dirigir a acção, claro que sim, que terá irrevogavelmente de subordinar-se aos termos de rigor, de clareza, de ciência, de lógica, de positividade que lhe confiram coerência; e terá, sem dúvida, um lugar, um papel, uma função. Quem disse ou poderia dizer o contrário? Não é com delírios e discursos automáticos que se governa um país. Nenhum surrealista, creio eu, por muito fora do juízo lógico que estivesse, quis, quer ou quererá tal coisa. E muito menos eu, que não sou filósofo, nem surrealista, nem político.
Mas então porque se insiste no amálgama? Ou porque, sob a capa da profundidade especulativa, se confundem as coisas tão elementares, que estas, sim, devem ser respeitadas porque dizem respeito a todos e por muita ou pouca bossa especulativa que os sujeitos em controvérsia exibam?
Para os homens comuns, entre os quais me incluo, a maior altitude ou profundidade do voo ou mergulho especulativos importam menos do que a honestidade e clareza com que se deslindem e elementarmente se formulem os pontos elementares que à maioria importam.
Que um especialista venha ensinar um leigo, o leigo agradece a lição, que não pediu, e boa tarde.
Mas que o faça em termos mais acessíveis. Para benefício da musa que tanto ama - a filosofia -que o faça confundindo menos e esclarecendo mais.
Censura-me F. B. a terminologia não técnica. Surrealistas, provavelmente, ter-me-iam censurado falar de surrealismo com tão poucas metáforas.
Mas enfim, porque não foi por encomenda de ninguém - surrealistas e filósofos - que escrevi, escrevo e escreverei, fica F. B. autorizado a não se (pre)ocupar muito (nada) com meus rigores terminológicos, ocupando-se antes em dizer afinal o que pretende e ao que vem. Porque era o que todos, afinal, gostaríamos de saber.

IV

Para não alongar mais esta resposta, nada direi sobre as questões levantadas na alínea c) de F. B. Ficará para outra ocasião, se ocasião houver.
Não posso deixar esquecido, porém, um ponto fundamental, e cujo não esclarecimento poderá dar origem a futuras especulações do especulativo F.
Se F. B. quer saber, sinto-me autorizado a escrever irreverências sobre a filosofia, especialmente enquanto ontologia e ideologia, sem que por isso me considere «a traficar com problemas tão graves como são os do conhecimento e, portanto, os da liberdade». Com os do conhecimento, talvez. Com os da liberdade, não.
Esta sua inferência dos problemas do conhecimento para os da liberdade é que me parece audaciosa. Queira demonstrá-la, p. f.
Que uma atitude mais iconoclasta e menos sisuda ou ortodoxa para com os filósofos e a filosofia seja considerada «traficar com o conhecimento», vá lá, embora a palavra «traficar» me pareça, além de feia, pouco própria na boca de um filósofo que se arroga tantos rigores de nomenclatura.
Mas que isso signifique traficar também com os problemas da liberdade, alto lá! - não me parece uma inferência inevitável. Creio poder conciliar uma posição iconoclasta para filósofos e instituições filosóficas com o amor da liberdade e o máximo respeito por ela. Uma coisa não impede a outra, antes pelo contrário. F. B. até sabe certamente que um filósofo contemporâneo definia filosofia como a actividade iconoclasta por excelência.
Fora da acção política e de qualquer sistema em que a minha responsabilidade social esteja directa e proporcionalmente implicada, claro que sim, que o meu desrespeito pela filosofa que rege esse sistema será o desrespeito à liberdade (condicionada) que esse mesmo sistema proporcionalmente até faculta.
Mas a liberdade de que falam os surrealistas e aquela de que (suponho) falava o folheto de Schuster e Legrand, não é a liberdade dentro de um sistema fechado de relações sociais, ou liberdade impropriamente dita; é, segundo creio, a liberdade propriamente dita que o homem, qualquer homem tem, fora dos circuitos de responsabilidade e liberdade limitadas que são os grupos organizados, hierarquizados e (vá lá) industrializados, de deixar errar o homem que erra, que pensa, que sonha, que escreve, que utopiza, que imagina, até onde o corpo lhe adoeça e os abismos o tentem: e, é claro, até onde não haja algum filósofo F. B. de cacetete na mão.
Não se deve confundir esta liberdade - a da imaginação - com a liberdade no contexto social e político, contexto que é o dos filósofos enquanto membros ou funcionários desse contexto mas que não é o daqueles «filósofos» que, embora a contra-gosto catalogados na história da filosofia, são dela ou de qualquer outra ordem instituída, os conhecidos e sempre punidos hereges. E que só são «filósofos» para os que lá, na filosofia, primeiro os meteram e de lá depois os querem tirar.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no semanário «Jornal de Letras e Artes» (Lisboa), em 4/12/1963

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