domingo, 22 de julho de 2012

DO REAL QUOTIDIANO AO SURREAL FANTÁSTICO

surreal-1- diário de um leitor – a fase literária

SURREALISMO E LUGAR-COMUM: REABILITAÇÃO DO REAL QUOTIDIANO (*)

A obsessão do quotidiano desdobra-se em aspectos que, surpreendidos de per si, elucidam muito mais do que pode parecer. Extremam-se os campos, uns que defendem outros que atacam o quotidiano. Mas estarão a atirar ambos no mesmo alvo?
A «reabilitação do real quotidiano» lida com a variabilidade e inconsequência dos conceitos «real» e «quotidiano». Fixemos cada um.
Os que tomam a fuga ao «real quotidiano» como uma traição, obstinam-se em não ver que o real reside na percepção individual que conduz à conceptualização individuada, de que a poesia e a filosofia constituem realizações afins. Toda a literatura, pelo menos a que é ainda moeda corrente, se esforça, de feito, para uma individuação nos modos como realiza literariamente os motivos e não nos motivos que escolhe; estes podem e devem (segundo, repito, os critérios aderentes de novelística) escolher a banalidade mas não o lugar-comum, aquela que é qualidade do objecto este que é pecado do sujeito.
Se o surrealista inventa uma surrealidade, não é porque desconheça ou destitua a «realidade», no sentido de quotidiano, única consentida dos realistas; é porque se apercebeu do perigo de contaminação do lugar-comum que as convenções do quotidiano propiciam em escala esmagadora. O que o surrealista pretende não é tanto a fuga mas a identificação mais absoluta com a realidade, por isso é mais realista do que os que tal se dizem, identificação essa proibida pelos mil e um intermediários comuns, convencionados, legais. Reage, como se compreende que teria de ser, a partir dos mesmos elementos, pois a verdade é que, por mais que os teóricos do conhecimento ponham e disponham sobre o que devemos aceitar em questão de realidade, ela, para uns e para outros, não deixa de ser, fatalmente, a mesma; mas sem deixar que a essa reacção (momento criador ou de inspiração, em que uma vivência saturada se esforça por tomar forma) se anteponha uma das muitas legalizadas pelo uso. E muito menos pelo abuso. Se intervêm as do uso, temos a literatura realista do senso comum que sendo o limite de negação da literatura, é também o limite de degradação da realidade; a literatura fotográfica equilibra-se entre dois abismos: o nada literário e o mau gosto ou lugar-comum, uso e abuso da realidade-senso-comum, afinal.
Sem querermos definições, improvise-se esta: literatura (ou poesia) é o esforço de adequação de qualquer vivência com a expressão única dessa vivência; porque o que acontece, sem darmos por isso, é existir a vivência original mas darmos-lhe, por deseducação e ambiência degradantes, inadequado expressamente, colhido um quadro dos muitos que circulam quotidianamente, em literatura ou fora dela. Assim o problema seria apenas o de transpor para a forma de expressão única que lhe cabe, única e insubstituível, o que insubstituível e unicamente foi elaborado.
Antes deste problema, porém, põe-se o da recepção das impressões, de que se apurará, depois, a alquimia criadora. Recebe-a o poeta em estado puro? Pela experiência tanta vez artificializada, pelos livros de remastigação, pelo vulgarismo da informação jornalística, como pode ser pura ou imediata a identificação do poeta com a «realidade», aquela que insistimos nos outros em considerar como mais certa, a que se comunica através de intimidade com as grandes obras de criação, mais reais, para nós, do que as pontes, florestas, crises de produção, intempéries e descarrilamentos; mais reais, repare-se que não dizemos as únicas reais. Ao poeta, pelo menos, criador de espírito e não de matéria, deve parecer mais real essa realidade do que a outra. Na medida em que a poesia sai vitoriosa da luta contra os anteparos socializados que impedem a consciência de ser só uma, isto é, de uma única corrente circular de mente para mente, através da obra de criação, realizada, na medida em que isto acontece é que é poesia; o homem, pelos artifícios criados em sociedade, que nem mesmo os socialistas negarão, afasta-se quilometricamente daquilo que lhe está mais perto, da sua própria consciência. A reversão a ela é o esforço de toda a poesia, de toda a literatura, de toda a criação espiritual; criar é, assim, identificar-se.
É o encontro com a sinceridade; sinceridade, entenda-se não a que obriga a confidências perante os outros, mas a sinceridade que é coincidência perfeita do sentido (ou pressentido) com o expresso. Soube o surrealismo ver bem como é degradada e degradante a linguagem usual, as locuções mecânicas, os hábitos de fala. Não quer dizer que ele crie uma fala insocializada, antes pelo contrário: apela para uma linguagem nivelada por mais alto, induz todos os homens a comparticiparem duma possibilidade de identificação das suas próprias intimidades, através da luta violenta contra as exterioridades «reais» que o contrariam; por isso, lutando por uma surrealidade, ele é também um caminho da única e autêntica realidade.
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(*) Publicado na revista «Bandarra-Artes e Letras Ibéricas», não sei em que data: depois d’A Planície e na vigência d’A Planície, com certeza (1956-1959)

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