domingo, 22 de julho de 2012

JEAN SCHUSTER E GÉRARD LEGRAND


1-7-schuster-1- scan domingo, 23 de Junho de 2002

SURREALISMO E FILOSOFIA(*)

Este texto de Afonso Cautela foi publicado (ver abaixo) no semanário «Jornal de Letras e Artes», 14. Agosto.1963

Comentários à margem de um texto de Jean Schuster e Gérard Legrand- A Filosofia e a Arte Perante o seu Destino Revolucionário - traduzido por Luís Pacheco e editado na série negra da Colecção «A Antologia em 1958 » (Lisboa, 1963), por Mário Cesariny de Vasconcelos.

Se «pensar é conhecer por conceitos» (1) e os conceitos têm que ser definíveis ou finitos, surge para o surrealismo a primeira contradição (2): sendo impensável, tem de pensar-se; tem de pensar-se, não para que se defina mas para que outras definições não colidam com a sua indefinição (3).

Se definir é tornar finito, definir surrealismo é tornar finito o conceito e pressupor que existe um conceito. Mas existirá? E será ele definível? Na medida em que projecta acompanhar o homem no seu movimento de autolibertação, é como ele e como ela - a liberdade -, «réalité indéfinissable» (3), infinita.

À pergunta de Gérard Legrand na revista «Le Surréalisme, Même» n.° 1- - Le Surréalisme est-il une philosophie? (título do artigo) - pode responder-se: o surrealismo não é uma filosofia, mas contém uma filosofia. Em vez de sistema, escola ou corrente filosófica, é o ponto de encontro de tudo o que se manteve fora de escolas, sistemas e correntes. Mais semelhante a uma propedêutica e a uma heurística do que a uma filosofia, o surrealismo na sua mais restrita ou definida acepção - a de grupo em volta de André Breton - foi ponto de encontro e de passagem para muitas correntes que, vindas da mais remota antiguidade mas inaproveitadas pela ciência e filosofia oficiais, ganharam uma súbita actualidade.
Receptor e gerador, o complexo surrealista francês recebeu afluentes de todas as origens, de todos os tempos e lugares, pouco ou nada trazendo de especificamente seu (4); nem sequer o «escândalo» de se voltar e revoltar contra uma ordem cultural que entroniza como exclusivamente viáveis a ordem cientifica, lógica ou racional e as ordens que desta derivam (a ordem técnica e tecnocrática, por exemplo), «escândalo» que foi, antes e depois do surrealismo, o de quantos, pela afirmação da Individualidade Criadora, mantiveram a tradição libertária do homem (5).

Porque «entrar no jogo» é tacitamente aceitar as regras do jogo, porque participar da ordem filosófica, ainda que para a discutir, já é de certa maneira aceitar essa ordem, surge para o surrealismo outra contradição: naquele núcleo doutrinal mínimo necessário para dizer que não é uma filosofia, já está a «entrar no jogo», a reconhecer regras que depois tem de renegar, já está a «filosofar».

Mas não é só isso. Também se nega a «tomar partido» por um dos termos das muitas oposições dilemáticas que formam a história da filosofia dita filosofia e dita ocidental. Recusa-se a ser uma ou outra coisa; recusa-se, por exemplo, a ser idealista ou materialista e quer ser, simultaneamente, idealista e materialista, ou nem uma coisa nem outra, ou antes e depois de uma e outra coisa.

Porque - pensa o surrealista que pensa - quando a filosofia abriu essa e outras cisões, essa e outras antinomias, esse e outros dualismos, surgiu a contradição. A contradição é intrínseca à lógica. Só depois da dicção (filosófica) houve contradição. O surrealista enquanto surrealista quer o impossível: estar antes e depois da filosofia, estar antes e depois da contradição; mas há-de fatalmente contradizer-se, enquanto participar, ainda que para a discutir, da ordem filosófica.

Pensar e dispensar a filosofia, eis a função «filosófica» do surrealismo. Eis o que nele há de «titânico» (6), de «prometaico» (7), de «utópico» (8). «Utopistas» chama Mário Cesariny de Vasconcelos aos que, como Breton, Péret, Lisboa, Artaud (citados na breve nota explicativa do folheto) (5), representam, entre o risco de se contradizerem e o risco de fazerem outra filosofia (mais uma), a máxima revolta contra a prisão da lógica, os caminhos fechados ou a fechar-se, esgotados e esgotantes da filosofia dita filosofia e dita ocidental.

Utópica faina, sim, com o seu quê de loucura e de vertigem (9), mas não ociosa nem gratuita. O utopista sabe que a lógica, a ciência, a razão tem e terá um papel indispensável na revolução; mas além de transformar o mundo - mot d'ordre que os surrealistas foram buscar a Marx - há que, conforme a palavra de ordem de Rimbaud, mudar a vida, faina duplamente utópica, pois, antes que a primeira esmague e comprometa irremediavelmente a segunda, é preciso impedi-lo. Este fundo anárquico do surrealismo religa-o também à mais antiga e arreigada tradição do homem, à luta libertária do Indivíduo contra a Instituição.

Jean Schuster e Gérard Legrand abrem o texto com a afirmação: «O que falta a esses senhores do pensamento socialista é a metafísica.»

Na melhor das hipóteses que teriam os autores querido dizer com a palavra «metafísica» ?

Se há duas acepções, uma substantiva e outra adjectiva, se uma é a Metafisica significando ontologia ou sistema devidamente historiado na devida história destas coisas, e outra é, adjectivamente, o que de metafísica possa haver no comportamento e pensamento de alguém, não temos então nada que lamentar ao pensamento socialista por lhe faltar uma Metafísica na primeira acepção, ou que lhe falte o desejo de ter uma. Nisso, na desnecessidade reconhecida de não fazer regredir o pensamento às construções de universos numa cabeça, parecem hoje coincidir correntes - positivismo, marxismo, neo-positivismo, surrealismo, etc. -incoincidentes aliás noutros aspectos e propósitos.

Na segunda acepção - a da necessidade ou desnecessidade metafísica do indivíduo, aquilo que nalguns continua a ser a fraqueza (ou ...franqueza?) de seres relativos que aspiram ao absoluto (11), de seres finitos que ambicionam o infinito, creio que isso é com cada um e de lamentar é apenas que os teóricos da antimetafísica não pratiquem o que tanto exigem dos outros. A pretensão teórica antimetafisica não equivale exactamente a uma ausência de metafísica; antes pelo contrário, a pior metafísica localiza-se, como se sabe (12), nos antimetafísicos. O que importa averiguar é se no mais antimetafísico dos teóricos, no teórico mais antimetafisico, não continuará inevitavelmente a haver, e desde que teorize, desde que abstraia, desde que filosofe, desde que sistematize, fumarada metafísica.

O logro, em que uns caem e (se) deixam outros cair, é fazer crer que só pelo facto de atirar pedradas à metafísica, pedradas teóricas à metafísica, deixa efectivamente, no fundo e na prática, de ser metafísico.

O que o surrealista não quer é ser tão hipócrita nem tão simplista; se, por mais decretos que abulam a sua fome de animal infinito enjaulado no infinito, é no infinito que tenta projectar-se, é ao absoluto que aspira, ao surrealista nada custa reconhecer (e com toda a franqueza!... ) a fraqueza do homem: eis-nos, simultaneamente, perante outra das funções «filosóficas» do surrealismo - mostrar a hipocrisia dos teóricos da antimetafísica e outra das suas utópicas tarefas: reproblematizar, em termos novos, as relações entre o homem e o absoluto.

O surrealista, além de mais honesto é mais inteligente que os profissionais da inteligência, por não dar nem querer dar por arrumado (13) um assunto que estes, através de escamoteações várias, sumariamente liquidam. Mais materialista que os materialistas (leia-se «teóricos do materialismo»), mais positivo que os positivistas (leia-se «teóricos do positivismo»), mais racionalista que os racionalistas (leia-se teóricos do racionalismo»), o surrealista não se conforma com a estrutura psíquica atrofiante que é por enquanto e que - pensa ele - contrariamente à tese marxista, será sempre a do homem, por mais que as infraestruturas económicas e sociais se modifiquem e enquanto, paralela à revolução material, não se efectivar a «outra» revolução.

O surrealista não deseja uma solução «fideísta» (13), nem uma solução metafísica (dada por qualquer Ontologia), nem uma (dis)solução racionalista; o que propõe e pesquisa é uma revolução nas estruturas mentais, revolução paralela à das estruturas económicas e sociais, a fim de criar capacidades perceptivas, afectivas (11) e volitivas que lhe permitam conhecer o que lhe querem dar como incognoscível, ou cognoscível através dos meios consuetudinários da aldrabice filosófica.

Autêntico realista, não por dar a imagem esteriotipada do real visto segundo a óptica e perspectiva diurnas comuns mas por, através do sonho, do discurso automático, do humor negro e do non-sense, da cabala, fonética ou não, etc, permitir a vigência e vigilância daqueles aspectos que, ainda reais, inserem no real aparente a profundidade e conteúdo que a cópia do cliché realista não dá, o surrealista procura acordar no homem o sentido, nele inato, mas adormecido, do real. Será necessário repetir que o maravilhoso, o poético, o surreal nada tem de metafísico visto que é o mundo nas suas insólitas, inesperadas, inéditas correspondências, correlacionações, analogias?

Ao que vem Hegel no referido folheto e por causa disto é que não se percebe, nem se percebe a falta que ali faz a Metafísica, a do Hegel ou a de outro qualquer. Schuster e Legrand parecem interessados em fazer do surrealismo mais uma escola filosófica, mais uma Metafísica ou Ontologia. Não vejo porém que o surrealismo ganhe nada com isso. Por causa da dialéctica e da falta que a dialéctica faz a um pensamento do tipo analógico como é o pensamento poético, que se recusa, inicial e iniciaticamente, a participar do tipo lógico de pensamento que é o da filosofia dita filosofia e dita ocidental, não vejo que o Hegel fosse necessário.

Dialéctico, na mais remota tradição, é o reconhecimento pelo pensamento das suas próprias limitações e contradições; dialéctico é o pensamento que se autoconfere; dialéctico é a dinâmica do pensamento não dirigido, autodirigindo-se; dialéctico é reconhecer as contradições intrínsecas ao princípio da não contradição e sabendo-as, assumindo-as, ambiguamente (15), assumindo-as, não as escamotear; dialéctico é saber que para se libertar material, social. e historicamente, o homem precisa da lógica mas para se libertar espiritual, individual e totalmente (não só na sua dimensão histórica mas também cósmica) o homem precisa de se libertar inclusive da lógica.

Esta ambição - a de uma «hiperlógica» (16), a de uma transfilosofia, a de uma ultra-razão, a de uma «mais consciência» (17) - faz ainda parte da função «filosófica» do surrealismo.






Resumindo e concluindo, enumerem-se os aspectos da função «filosófica» do surrealismo (18):

1 - Apontar no pensamento lógico, que se firma no princípio da não contradição, as suas intrínsecas contradições e antinomias (19).

2 - Reproblematizar as relações do homem com o absoluto, mostrar a inanidade das ontologias, desmascarar a hipocrisia dos teóricos da antimetafísica e pesquisar soluções inéditas para o problema.

3 - Fazer face à ditadura mental dos que, em nome da lógica, dela fazem «baluarte inexpugnável» para combater, com a sua superstição e charlatanice, toda e qualquer tentativa de desatrofiar as capacidades mentais do homem.

4 - Promover aquilo que a teoria ou crítica do conhecimento disse fazer mas não fez: criticar de facto o valor, significado e alcance do conhecimento lógico

5 - Obviar a que a revolução material (económica, social, política) pelo dirigismo filosófico, pela organização ultraburocrática da cultura, pela omnisciência partidária, etc., esmague e comprometa a revolução humana total

6 - Revolucionar a «psicologia», mostrando antes de mais nada que não é possível uma ciência estritamente positiva da vida psíquica

Depois:

7 a - denunciar os profissionais da psicologia (os psiquiatras, os alienistas, os da psicologia objectiva, os do behaviour, os da psicologia experimental, etc.) e o monopólio que detém, cada um à sua parte ou todos em conjunto, do universo psíquico, monopólio de conhecimento e de cura, opondo-lhe a função de gnose da actividade poética;

7 b - denunciar simultaneamente e por outro lado os que querem fazer da poesia uma coisa estética, um género literário, um meio de expressão, uma linguagem artística, opondo-lhe o acto poético ou criador como acto de gnose

7 c - modificar a mentalidade (ou mitologia) do homem contemporâneo, substituindo por mitos autênticos (os que o surrealista considera autênticos) os falsos mitos, pondo mitos maiores no lugar dos menores; visando, também, através de circunstâncias e problemática contemporâneas, reencontrar, recriando-os, os mais velhos mitos da humanidade

7 d - reabilitar as energias psíquicas do homem moderno, atrofiadas em sistemas estatais totalitários, redescobrindo as mais antigas terapêuticas para as «doenças do espírito» e substituindo quer o psiquiatra quer o cura de almas; pretendendo-se detentor da única autêntica tradição capaz de compreender e dominar as mais secretas forças do homem, o surrealista considera ainda o acto criador ou poético, além de acto de gnose, um acto terapêutico também.

7 e - fundamental é reabilitar nas suas verdadeiras fontes aquilo que a psicologia oficial nega ou persegue sob o nome pejorativo de «ciências ocultas»

7 f - criar ou tentar criar um espaço livre onde o pensamento, indiscriminadamente filosófico, científico e poético, possa prosseguir a sua missão intrinsecamente revolucionária, revoltando-se inclusive contra si próprio se for esse o caso.
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(1) Kant, citado in «Vocabulário de Filosofia», de Armand Cuvillier, Editorial Gleba, Lisboa, 1961.

(2) «La nature ambigue» du surréalisme (qui m'a toujours paru être la meilleure marque de sa «vraisemblance»)» (in Surréalisme est-il une Philosophie?, artigo de Gérard Legrand revista «Le Surréalisme, Même» n.° 1.

(3) «Le surréalisme selon Alquié s'opposerait à la médiation dialectique, et sa vision de l'homme «réalité indéfinissable», dont la poésie est l'expression directe» (...)» (in art. cit.).

(4) A escrita automática é talvez o único «apport» especificamente surrealista.

(5) Aos que se levantam embora para cair vencidos, e revoltam, chamam-se Poetas, escrevam ou não escrevam versos, venham catalogados na história da literatura ou na história da filosofia, na da pintura ou na do teatro, na da música ou na da religião.
Para saber onde está a Poesia e o Poeta, porém, - catalogados nesta ou naquela história, pelos profissionais desta e daquela história - é condição necessária e suficiente saber o que houve de visionário, de utópico, de titânico e se (e onde) a Ordem, qualquer ordem, foi posta em questão.
Claro que o acto poético ou revolucionário é, como todos os actos de subversão absoluta, ferozmente punido: do hospital de loucos ao hospital comum, da excomunhão à fogueira, da deserção à loucura, da pena mínima à pena máxima, eis aí as sanções que os profissionais da ciência, da filosofia, da técnica, da política., da crítica, etc, ou a natureza por eles, se encarregam de aplicar aos que, à margem da filosofia, da ciência, da literatura e da arte oficiais, representam o Rio Subterrâneo e Proibido da Poesia: Artaud, Chestov, Holderlin, Rimbaud, Nietzsche, Fernando Pessoa, Kafka, Breton, Péret, Lautréamont, Cesariny, são apenas alguns nomes ao acaso...

(6) «(...) a filosofia já esquecida das suas dimensões titânicas e das suas ilimitadas possibilidades», in folheto de Jean Schuster e Gerard Legrand).

(7) O termo «prometeismo surrealista é usado pelo Padre Manuel Antunes, S. J. no seu livro Ao Encontro da Palavra (1), ensaios de crítica literária, Livraria Morais Editora, Lisboa.

(8) Referindo-se ao texto de Schuster e Legrand, Mário Cesariny escreve na nota de abertura do folheto: «Entre nós, será mesmo uma raridade ao alcance de muitos e pode circular como preparatória a leitura sistemática de Breton, primeiro; depois, dos utopistas contemporâneos: Breton outra vez, Péret, Lisboa. Artaud...»

(9) «A Revolução deixara de ser aquela vertigem do infinito como a entendiam Robespierre e Saint-Just». (in folheto citado).

(10) A suprema ambição do surrealista é, além de modificar a mentalidade do homem, a mesma dos alquimistas e mágicos; dotar o espírito de omnipotência não só sobre a natureza mas sobre o próprio corpo humano, omnipotência que lhe permita desafiar a morte e o sofrimento, desaliená-lo da sua condição de animal histórico e social, de animal domesticável, de objecto, de número) projectando-o na sua dimensão e condição cósmicas.

(11) Em vez de relativo e absoluto, Jean Schuster e Gérard Legrand preferem falar de finito e infinito, afirmando: «É pelo jogo dialéctico do finito e do infinito que o pensamento libertador recuperará uma dimensão metafísica que lhe é indispensável, Ora se a Metafísica na acepção de Ontologia ou Ciência do ser, supõe por um lado um sistema fechado, por outro um dualismo entre imanente e transcendente, relativo e absoluto, profano e sagrado, mítico e lógico, esotérico e exotérico, ele, e por outro lado ainda uma separação entre física e metafísica, então a palavra «metafísica» não será de maneira nenhuma aceitável do ponto de vista em que pareciam colocar-se os autores: o surrealismo.

(12) Segundo o antimetafísico Abel Salazar «a pior metafísica é a que entroniza a ciência». (in « A Posição actual da ciência, da filosofia e da religião», conferência feita na Faculdade de Medicina de Lisboa, em 3 de Fevereiro de 1933 e editada em separata da revista «A Medicina Contemporânea» (1934).

(13) (...)o hábito (...) de assimilarem a um puro fideísmo toda e qualquer antecipação intelectual ou sensível, assim como toda a construção de carência do racionalismo (in folheto citado).
«Todos aqueles que (...) simplesmente preferem a permanência dos problemas à suficiência arrogante das soluções». (in folheto citado).

(14) «Realistas que têm um nome especial para cada tipo de automóvel, mas somente o nome «amor» para expressar os mais variados géneros de experiência afectiva». -Erich Fromm (in « A Linguagem Esquecida», Zohar Ed., Rio, 1962.

(15) Ambiguidade não é contradição; ambiguidade é a contradição lucidamente reconhecida e assumida.
A ambiguidade do surrealismo é a ambiguidade do homem, com cujo movimento de humanização ou sobre-humanização se identifica.
Note-se que humano e humanizar são palavras ambíguas, tanto podendo significar o que no homem existe de sub como de sobre humano.
Note-se também o papel representado pela ambiguidade no pensamento de um filósofo tão alheio ao surrealismo como M. Merleau-Ponty.

(16 ) «Todos aqueles que trabalham no sentido de uma hiperlógica mais conforme à necessidade e ao direito do conceito (...)» (in folheto citado).

(17) «Como se poderia, com efeito, atingir essa «mais consciência» se nos recusarmos a arriscar o pensamento perante alguns conceitos cuja verdade (no sentido hegeliano) só existe no plano metafísico, como por exemplo, a liberdade?» (in folheto citado).

(18) Se não é possível dar uma definição filosófica de surrealismo, é no entanto possível defini-lo e situá-lo hístoricamente.
Assim, historicamente, entre o que é e o que não é surrealismo, deverá reconhecer-se uma espécie de gradação da periferia para o centro, situando-se este no seu fundador -- André Breton. Surrealismo será assim, em primeira instância, o autor dos manifestos; depois os que, através de purgas, dissidência e segregações, se mantiverem comparticipantes nas actividades do Grupo; na sua máxima extensão, porém, a palavra surrealismo deverá incluir, além da «constelação Breton» ou Grupo Surrealista de todo o mundo, organizados segundo o programa dos manifestos, os que, individualmente, ao longo dos anos, tendo participado do Grupo e até da sua fundação com ele romperam disparando em direcções várias: uns com órbita própria e sem mais ligações além deles próprios (Artaud); outros que, embora prosseguindo uma aventura cujo ponto de arranque se situa no Grupo, aderiram a grupos já existentes (é evidente que se excluem deste número aqueles cujo engagement político os obrigou a cortar com o passado surrealista); outros ainda constituindo grupos com designações próprias (ex.: Louis Pauwels com o «realismo fantástico» e provindos ou não do Grupo Surrealista; finalmente os que designaria de pró-surrealistas: os que, de fora, aderiram uma ou mais vezes não ao Grupo mas a manifestações e actividades colectivas: o caso de Henri Michaux, cuja trajectória poética é afim da do surrealismo.

(19) Por isto é que os surrealistas devem, sempre que possível, repudiar a nomenclatura nascida da sistematização científica e filosófica. E por isso o prefixo anti se generalizou entre eles: antifilosofia, anti-romance, antiteatro, etc. Só o académico aceita as designações e classificações provindas dos quadros taxonómicos elaborados pela cultura oficial.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no semanário «Jornal de Letras e Artes» (Lisboa) , em 14/8/1963







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