sábado, 21 de julho de 2012

MARCEL JEAN E ARPAD MEZEI: GÉNESE DO MODERNO


1-6 surrealismo e surrealistas

DA CIÊNCIA LÓGICA À HERMÉTICA: O MEU (DES) ENCONTRO COM OS SURREALISTAS

16/Julho/1989 - Este texto, longo e chato, permaneceu inédito (felizmente) e foi escrito, ao que parece, entre 1956 e 1958, destinando-se provavelmente aos cadernos «Zero», de que saíram em Ferreira do Alentejo apenas dois números, após os quais a PIDE interveio.
Com citações a figuras muito badaladas da cena literária de então, assume uma intenção polémica, no espírito de «crítica, convívio e controvérsia» que os cadernos «Zero» explicitamente e em subtítulo assumiam.
Sem nenhuma profundidade, dada a sua intenção deliberada e principalmente polémica, continham-se nesse texto algumas intuições fundamentais de A.C. (infelizmente) sobre a diversidade dos padrões culturais e o contributo que a literatura surrealista, nomeadamente ensaística, dera para a descolonização cultural do escritor, o meu maior cavalo de batalha dos anos 50, 60 e arredores.
Não será isso, no entanto, que o absolverá de ser um texto, além de longo e chato, imbecil (feliz ou infelizmente). (Afonso Cautela)


A LITERATURA COMO CRIAÇÃO DO MUNDO

Os surrealistas, partindo da prévia informação de que não querem letreiros, impedem-nos de os considerar o que são: e aqui começa a ambiguidade. Julgo que exageram os que pretendem arvorá-lo em processo e quase em teoria do conhecimento ou epistemologia; e julgo que a tal equívoco se deve a “prosa surrealista” de alguns dos ensaístas estudados a seguir. O pensamento elíptico e por imagens, contra o discursivo e racional, porque pretende um fim em si próprio que nenhum acto racional (e portanto social) pode ter, acaba por não ser nem pensamento nem poesia: letra morta. Já é mais aceitável o surrealismo como processo de confusão no mundo. E muito melhor ainda o surrealismo como “reabilitador do real quotidiano”, rejuvenescimento do comum e banalizado, enriquecimento do conhecimento do real sem ser o seu único ou principal método de conhecimento.
Como os surrealistas, vemos na literatura uma arma em vez de um fim, uma desforra e não uma cumplicidade com a abjecção. Por isso somos, com eles, anti-literários, no desprezo pela poesia-joia, poesia-arte e poesia-estilo, pela poesia palaciana ou inteligente, pela poesia “ao serviço de». E como os surrealistas, cremos numa possibilidade de comunicação com o real absoluto, surrealidade ou supra-realidade, aquela onde até agora tinham exclusivamente manobrado os metafísicos teóricos, comunicação essa efectuada através da poesia.
Mas o que nos impede de aceitar o surrealismo em toda a sua extensão é verificar que ele circunscreve o real ao literário, em vez de considerar a Poesia como Criação do Mundo. Não nos interessa a literatura nem os géneros literários. Interessa-nos, sim, em todos os géneros, em todos os idiomas, em todos os campos da actividade humana (e nem só no cultural, é nem só no artístico, e nem só no literário), em todas as épocas e em todos os lugares da torra (mesmo os que giram fora da órbita ocidental) descobrir a fotosfera, essa “fonte activa de energia radiante” em todos os grandes criadores do mundo.
Ora o surrealismo circunscreveu ao Ocidente, a determinadas épocas, quase que à língua e literatura francesas as suas pesquisas. Como podemos acreditar que os «sept sages de la civilization double», viessem todos de França, isto é, de Paris? Fora da literatura, quantos outros «sages» não conta a cultura francesa? E, além da cultura francesa, quantas não haveria ainda a averiguar? Esqueceram- se os surrealistas de que o mundo não é Paris? E de que os seus famosos «sept sages» podem não passar das fraldas muito raramente chamuscadas do «soleil noir» que arde e refulge sabe-se lá onde?
Sem falar, é claro, dos Shakespeares e que tantos outros da cultura ocidental e mais a sua incurável miopia (“estado daquele que tem a vista curta”, informa o dicionário). Os nossos surrealistas aceitaram a lição de Paris de modo incrítico e pueril. As primeiras impressões são as que prevalecem e nós somos, em grande parte, o que forem, em determinada idade crítica ( ou incrítica) os primeiros seis ou dez livros que nos impressionarem.
Ora, em determinada altura, foram livros surrealistas o que veio de Paris. Uma visão mais ampla de tudo, impede a fé absoluta na cartilha surrealista. Aliás, se o surrealismo não é uma escola literária nem artística, mas um estado de espírito, como estado de espírito, e antes que existisse o surrealismo soit-disant, ele existia e continuará a existir. Como movimento libertador, aqui o iremos passar em sumária revisão, já que historiá-lo cabe aos historiadores e vivê-lo aos que o aceitem como dogma revelado. O espaço que dedicarmos às manifestações surrealistas (como vamos preferir chamar-lhe, em vez de escola, movimento ou corrente) justifica não só o interesse que pessoalmente nos merece como o que, objectivamente, achamos dever merecer a toda a gente. Pena é que as publicações surrealistas (um pouco pelo gosto ocultista inerente...) apareçam e desapareçam, não cremos que pela venda imoderada ao público mas pela escassez de exemplares impressos e recolhimento imediato, à base, dos que sobram.
Contraponto, revista e depois editora antes das comadres se zangarem, propiciou algumas edições. Como revista, os dois exemplares que possuímos atestam a promiscuidade em que até certa altura viveram surrealistas e neo-realistas, talvez porque se entendessem quanto aos fins, embora se desentendessem quanto aos meios. Nestes é que a porca torce o seu já de si retorcidíssimo rabo.


JOSÉ AUGUSTO-FRANÇA

Gostamos sempre que nos ensinem. E a respeito do surrealismo não nos podemos queixar, pois há um dos do falecido grupo que fala muito em “pedagogia” e já escreveu um diálogo “pedagógico” a convencer não sei quem das excelências da por ele chamada Arte Moderna; houve, também, pintores surrealistas que vieram falar da sua pintura, expuseram-na e impuseram-na; e Cesariny, dos «melhores poetas pós-fernandino» (2) meteu-se, embora meteoricamente, a crítico, escreveu crónicas anacrónicas e parece que se houve bem no mister. São, enfim, uns sábios, epígonos que se consideram dos “sept sages de la civilization double”.(3)
E nós, que andamos tão empenhados em que nos ensinem tanto a ciência lógica como a hermética, nós que tanto aspiramos a tocar o “coração do real” como as barbatanas do mesmo real, não podemos ficar indiferentes, embora fiquemos de pé atrás, diante do “aveuglant éclat” dos referidos cirurgiões do “coeur du réel”(4).
Deve ser por causa do brilho, deve; mas - pergunto - o que nos ajudam os do centro a lá chegar, nós, os da periferia? Nem sequer se entendem entre si! O historiador oficial do movimento, aos soluços (ou arrotos?) escarra nas pessoas e não explica nada: ”E nela, e por ela, eles saberão onde o homem deve escarrar » (5)
Confusos “pedagogos” estes do “soleil noir ». Se estão de posse de uma ciência oculta, é evidente que a perdem se o desocultam e a única maneira ou pedagogia será tornarem-na ainda mais oculta. Mas então para quê tanta febre em nos leccionarem?
José Augusto-França é o jornalista e panfletário mais activo do grupo. As páginas literárias de que se alimenta o “cadaveroso reino” estão por conta dele e deles. Que têm o instinto didáctico de um grande advento, não há dúvida. Mas o que ensinam eles? Que querem? Onde vão? De onde vêm? De onde vêm, sabemos: saíram, acabados e prontos, do tabuleiro de Paris. E nós, que estamos aqui para perguntar, apenas para perguntar, como leitores, maus lei-tores e leigos de todas as ciências, inclusive as ocultas, nós, perguntamos: a ciência oculta que, nos tempos em que o Mundo estava metido no Mediterrâneo, já se alargava do Nilo à Mesopotâmia, com postos de pronto socorro em vários pontos do continente euro-asiático, poderá, hoje que o mundo é interplanetário, estreitar-se à França dos franceses? Se a arte moderna que, como se sabe, herdou de várias origens, as mais exóticas e longínquas, exóticas no espaço (México, Índia, China, Japão) e longínquas no tempo ( Altamira, manipanços, Miró), como se percebe que o pensamento moderno, cuja génese é estudada no já citado livro de Marcel Jean e Arpad Mezei, Genèse de la Pensée Moderne, que estamos a seguir de perto nesta acidentada travessia, se deva apenas aos sete sábios que, por coincidência, são todos franceses? Não conseguimos saber que “civilisation double” vem a ser essa. Mas desconfiamos, preliminarmente desconfiamos (que a virtude da desconfiança não tem sido das menos expandidas por estes cínicos e cépticos da nova idade).

De posse, além disso, deste tosco instrumento que, não sendo razão dialéctica, nem razão teórica, nem razão pura, nem razão vital, mas um apoucamento e degenerescência de todas elas, a que talvez possa chamar-se uma sem-razão ou bom-senso, o que podemos nós mais, em face da “civilisation double”, do que desconfiar? Em vista ao que de mais geral podemos concluir da doutrinação ocultista até nós chegada, a melhor tradução para essa “civilization double” será a de “civilização ambígua”. Isto, claro, para não lhes chamar, além de ambíguos, mistificadores ou cabotinos, de que é específico o já referido escarrador (o que escarra é escarrador) dos Córnios.
Julgamos que o nosso bom-senso, rebento podre e tardio das cepas cartesiana, kantista e hegelista, chega para a ambiguidade, igualmente um seco e degenerado pé do grande ramo existencialista: Nietzsche (dionisismo), Kafka (absurdo) e Kierkegaard (desespero). Como dúvida prévia temos assim que martelar nesta desproporção de métodos: a ambiguidade joga e não joga, faz e não faz, diz e não diz, afirma e não afirma, entende e não entende; o bom-senso, o nosso bom-senso, ou nega, ou afirma, ou diz, ou não diz, ou sim, ou sopas, nunca é e não é ao mesmo tempo. Reconheço a desmodernidade dos meus escrúpulos mas o respeito pela condição humana, onde cabem ambíguos de dois gumes e racionalistas de um só, exige que a ambos pratique este prefácio heurístico, este feixe do hipóteses perguntadeiras. Não querendo analisar nem penetrar em nenhum, apenas queria mobilizar os primeiros socorros que nos permitam, porventura, entendê-los um dia, a eles que nem a si próprios se entendem. Porque acima deles e de nós está o que está. Não somos detentores da Verdade nem lutadores contra a Mentira, mas prefaciadores de ambas, apesar de todas as Verdades maiusculadas que são, talvez, a outra metade do rosto de todas as Mentiras.

Mas falemos da corrente, nada marítima e toda e sempre continental como têm sido as correntes a que melhor chamaríamos vias férreas, visto que é o Sud-Express que as traz, no caso em questão dentro das malas especialmente viajadas do senhor da Galeria de Março, França chamado, não sei se por baptismo, se por alcunha, se por hábito adquirido. O França! E toda a gente sabe que se trata de um caixeiro-viajante, ajoujadinho com as últimas, que depois as já referidas folhas descarregam, com porte alfandegário. Gostamos de gente que trabalha e nada oporíamos ao labor generoso do articulista, se estas ondas invasoras e opressoras não dessem em resultado falsíssimas idolatrias, e o prolongamento da asfixia que sobre a liberdade de pensar de que tantos séculos dogmáticos, sistemáticos e escolásticos nos tinham desabituado. É como representante de mais uma escolástica que o trazemos a lume.
Professor e não pedagogo, porque:
1 - Notícias, notas, lembranças, informações, agendas, bagagem e mais bagagem vinda directamente, sem elaboração, de Paris, é mister de todo o bom repetidor da ciência alheia, de que há já, neste canteiro da Europa, muitos e exímios jardineiros.
2 - Incapaz de pensar como toda a gente e muito menos por si só, e de modo a que o diabo, ao menos, o perceba, usa de uma gramática cuja tradição vem daquele nominalismo metafísico que se entreteve séculos e séculos, a jogar ao bilhar com as altas palavras, os altos princípios e outras coisas tão altas que ninguém lhes chega. O publicista em questão acrescenta-lhe uns poses surrealistas, o que não chega.
3 - Um pedagogo tem ideias claras, ainda que sobre assuntos obscuros ou principalmente em relação aos assuntos obscuros, avisando o leitor de uma atenção mais concentrada para as obras que a reclamam. O pedagogo prefacia as obras. Cada um que penetre nelas, se lhe chegam os dentes. Mastigar-lhe a comida é que não é de pedagogo, é de professor. Se nos fala de Henry Miller, não ficamos a saber nada do espírito de Miller pela tradução, em muito mau português, que dele nos faz o crítico. Se fala de pintura, borda literatura (má) à volta dos quadros. E nós, nem quadros, nem nada: ficamos azuis.
4 - Não há uma linha de pensamento que ligue os artigos de aqui aos de ali, os de hoje aos de ontem. Parecem fruto de soluços incidentais, de momentâneas comichões, das primeiras palavras que ocorrem à caneta. Muito menos se descortina uma unidade substancial na obra, que se de imaginação não é, de pensamento também a não podemos considerar.

Quem parece tão aguerrido apologeta da imaginação, concorre assim, com a produção copiosa a que se entrega, com a dialéctica frustre, pretensa e pretensiosamente analítica, (não crítica, não racional - que seria o menos), ambígua, não pedagógica, portanto, para uma confrangedora esterilidade imaginativa, quer prática quer literária, para a estagnação das potências infernais da criação poética. Ora a esterilidade é tudo quanto há de mais contrário à pedagogia da criação... Não duvido que Augusto-França esteja repleto de boas intenções e todo o seu desejo seja, de facto, civilizar-nos. O método é que é infeliz, ineficaz e maléfico. Não lhe agradecemos, antes pelo contrário. Fora a propaganda de alguns pintorzinhos nacionais de abóboras ou de pinta-monos modernistas, que lhe devem a nomeada em catálogos, exposições, revistas e artigos por ele copiosamente distribuídos, aqueles que não precisam de José Augusto-França para toda a gente os conhecer e reconhecer, como é o caso de alguns grandes realizadores cinematográficos com os quais, por vezes, investe, como é o caso de Vieira da Silva, Amadeu de Sousa Cardoso e outros pintores ou escritores, esses não lhe estão, com certeza, agradecidos, porque ele só tem feito caricaturá-los, desfigurá-los, apresentando-os em versões suas.
5 - Aprendeu mal a lição. Um bom educador começa ele próprio por aprender e só depois é que ensina.
Discordar de José Augusto-França não quer dizer que discordemos do espírito das correntes que ele segue e que tão perniciosamente quer transportar, sem transfusão, de Paris para a Pátria. Estamos com ele: no primado da imaginação sobre a ciência; no ódio à civilização racionalista e tecnocrática; no amor da poesia e em que é ela o substratum de todas as formas de arte; na necessidade de uma pedagogia da arte, de uma educação para a arte e da arte na educação; no anti-literário e no gosto de caminharmos para a literatura não literária, para a pintura não pinturesca...; no estudo de algumas figuras fundamentais da poesia em prosa como as que os Cornios apresentaram; na não aceitação pura e simples do desespero existencialista, mas na sua transcenção pela liberdade, pela imaginação e pelo amor) na acção fora do especulativo, fundando revistas, dirigindo galerias de arte, escrevendo em jornais, desenvolvendo, enfim, uma acção pedagógica, que só é pena esteja falsamente orientada por um falso método.
Discordamos: que faça aquilo que nega, aplicando a razão a domínios onde não deve empregar-se como os da interpretação da arte, numa prosa forçosamente ocultista, que nada esclarece e nada contribui para introduzir o leitor no mistério das obras. Toda a prosa sobre arte, em nosso entender, deve constituir um prefácio ao irredutível da arte. A prosa de José Augusto-França não tem valor crítico nem ensaístico porque lhe faltam todos os atributos da crítica e da ensaística: clareza, inteligência, coerência, imaginação criadora
A sua prosa é académica, metafísica, na linha dos metafísicos ou filólogos do amor, da arte, da poesia, do espírito, de deus, a sua prosa é escolástica, como queríamos demonstrar.

UMA OPINIÃO

Entre a poesia que reclama o primado da inteligência e a que reclama o da imaginação, é oportuno arquivar a opinião de que a poesia não é ideia, sentimento, intuição, sensação, emoção » ( 6 ) como diz João Gaspar Simões, o que explica a desatenção com que tem visto os poetas da imaginação, Raul de Carvalho e Mário Cesariny. Para o poeta o mundo não é o “mundo como vontade e representação” dos metafísicos e muito me-nos “como vontade e sentimento” dos líricos. Para o poeta da imaginação ou poeta absoluto, Poesia é o “mundo como imagem e vontade”. João Gaspar Simões comentando a poesia de António Quadros, diz que esta beneficia de quantas regalias foram concedidas aos poetas pela nova «revolução francesa», o movimento poético que entronizou Baudelaire. Pois é, desde Baudelaire que poesia é “mundo como imagem” e desde Nietzsche que poesia é “mundo como vontade”. Falta agora a última e necessária síntese, que nos não virá certamente da lírica sentimental, cada vez mais pingadinha, mais exangue, mais roída do tempo, como foi assunto de um versículo de mais atrás, lá no «Zero-dois» que deus haja.
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(1) In Genèse de la Pensée Moderne, essai de Marcel Jean e Arpad Mezei, Paris, 1950, pg. 221.
(2) Manual de Prestidigitação, de Mário Cesariny de Vasconcelos, pg. 35
(3) Genèse de la Pensée Moderne, pg.221
(4) Genèse de la Pensée Moderne, pg 217
(5) Tetracórnio, pg. 72
(6) Diário Popular, 5/9/1952

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