domingo, 29 de julho de 2012

O ABJECCIONISMO EM 1963 - I

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VOLTAS E REVIRAVOLTAS DO ABJECCIONISMO

COMENTANDO UMA FRASE DO SURREALISTA PEDRO OOM COM CITAÇÕES DE ANDRÉ BRETON E CESARINY


Tavira, 7 de Março de 1963

Verificada (por alguns) a Abjecção, pergunta-se: há ou não há diferença entre:
1º - os que aceitam, servem (servilmente servem), apoiam, defendem e prorrogam a Abjecção
2º - os que, embora nela nascidos e mergulhados, não agem nem reagem contra, indirectamente colaborando nela
3º - os que (suicidando-se, virtual ou realmente) lutam por uma gravidade em sentido contrário à da física: isto é, de baixo para cima.
Pergunta-se ainda: poderá falar-se de "excesso de pureza" em André Breton?
O que explica, justifica e valida todo o surrealismo não será exactamente esse ímpeto para cima, essa impulsão directamente proporcional à opressão?
Poderá sem esta noção axilar ou axial de "bem" (Amor=Liberdade=Verdade) existir experiência ou actividade que mereça o nome de surrealista?
A exigência de “pureza" (pureza entendida como libertação das
impurezas) está, a meu ver, certa. Que daí se depreenda , inevitavelmente, a excomunhão dos não-puros, é que já não. Porque o problema não se põe em termos antinómicos de "puros" e "não-puros"; põe-se em termos dialécticos de purifícação ou libertação, de movimento para estados cada vez mais livres e mais puros.
O que importa, no seio da Abjecção, é o "índice de obscenidade" de um acto ou de uma acção. Quanto mais obsceno (quanto mais violentamente agressivo contra a Ordem ou Abjecção Vigente) mais moral, isto é, "melhor". O índice de obscenidade há-de variar, de indivíduo para indivíduo e, no mesmo indivíduo, conforme as circunstâncias ambientes e as disposições do sujeito. Cada um só terá de saber não onde finda a Abjecção (o que é Impossível) mas onde começa a contra-Abjecção e até onde ela sobe.

Quando o surrealista Pedro Oom pergunta "O QUE PODE FAZER UM DESESPERADO QUANDO O AR É UM VOMITO E NÓS SERES ABJECTOS?"
pergunto eu: - Que amplitude terá aí a palavra "nós"?
- Refere-se esse "nós" aos três tipos de participação acima referidos? Ou a dois deles? Ou apenas a um? Qual ou quais?
Se, indistintamente, todo e qualquer que nasce num meio determinado é e será simplesmente o que o meio dele e nele determina, estaríamos perante um determinismo - o que nem o surrealismo nem o abjeccionismo, ou ambos conjuntamente, creio aceitarem.
André Bréton por várias vezes afirma a "transcendência” do espírito sobre a história, da vontade humana sobre a fatalidade ou facticidade dos acontecimentos, o valor liberdade ou livre-arbítrio como supremo.
Postulando o livre-arbítrio, é indispensável reconhecer a soberania da vontade humana e que a vontade de uns faça deles algo que os diferencia dos outros.
Logo, a pergunta formulada por Pedro Oom tem, a meu ver, esta resposta:
Verificando-se que:
- nem para todo o ar é um vómito, e os que o reconhecem é porque têm a percepção de um outro ar
- nem todos se considerara abjectos, e só têm disso a noção os que, não tendo ou não querendo ter algo de abjecto, percepcionam a noção do não abjecto
- o que um homem desesperado pode fazer, quando o ar (para ele) é um vómito e ele (para ele) um ser abjecto, é :
1º - Manter-se desesperado, isto é, manter a noção de vómito (que há) e do abjecto (que é)
2º - Passar do desespero ( da noção do desespero ou vivência da angústia) à revolta (à acção) agudizando os contrários
3º - Passar da revolta à revolução, pela síntese dos contrários ou acção obscena (acção poética, criadora ou absoluta)
Eis o motivo por que a palavra "abjeccionismo" me parece insuficiente para expressar toda a amplitude deste esquema trifásico, circunscrevendo a totalidade do mesmo a uma fase - a lª - e correspondendo-lhe, por isso, um conteúdo negativo ou niilista, de abdicação e desistência. Ora não me parece que a desistência frontal e definitiva esteja nos propósitos dos que podem reclamar-se de "abjeccionistas”. Seria preferível, a meu ver, falar-se de uma "fase abjeccionista" de um processo muito mais vasto, e não de um abjeccionismo.
Assim, à fase abjeccionista", fase inicial ou do acento agudo, seguir-se-ia a fase intermédia ou crítica (a do acento grave) e finalmente a fase esdrúxula, obscena, criadora ou revolucionária.

O termo “abjeccionismo", além de me parecer, no caso indicado , restritivo da intenção última dos próprios abjeccionistas, creio que induz, por outro lado e devido à terminação em ismo, o observador comum em erro. Ele suporá, como tantas vezes supôs e continua supondo do "surrealismo*, tratar-se de mais uma doutrina, de um sistema, de uma filosofia, de uma escola, de um humanismo, de uma estética, etc.
Em compensação, uma das vantagens digamos públicas ou publicitárias da designação de "abjeccionismo” sobre a de "surrealismo", é deslocar o acento tónico da epistemologia para e ética, como convém. A problemática do real e do não-real, do material e do espiritual, dos monismos e dos dualismos (que a palavra "surrealismo" logo evoca), parece-me, com efeito, uma excrescência não só das metafísicas
tradicionais como das anti-metafísicas modernas. Nem metafísico nem anti-metafísico, nem materialista nem anti-materialista, etc., etc. - eis o que o Poeta (ser simultaneamente físico e metafísico) pode afirmar. Bizantinas questões me parecem as epistemológicas, vistas deste ponto de vista: a realidade Poeta.
"Eu sou dos que não acreditam nela” – diz Pedro Oom, referindo-se à "estética surrealista”. Eu diria que também não. Quando tudo se referir ao Poeta e não às "produções poéticas", a Estética ruirá. Perante o Poeta - a realidade a partir da qual o Real (todo o real) se cria - as especulações abstractas era torno de "poemas", "quadros , etc. deixam de ter sentido e consumar-se-á, creio eu, e afirmação de Breton, renegada por ele mesmo: "Toda a arte é estupidez", devendo acrescentar-se: toda a arte, e principalmente toda a Estética (ou teoria da arte) é estupidez (uma vez que colabora numa das mentiras capitais da ordem reaccionária (ou Abjecção), a mentira de dissociar o homem - que é unidade, totalidade e individualidade - em uma ou em várias das suas actividades (neste caso a actividade dita artística).

Antes de conhecer as opiniões de Pedro Oom, pensava eu (de acordo com as escassas referências de que dispunha) que "abjeccionismo” só diferia de "surrealismo" na maneira de parecer e aparecer aos olhos das gentes, continuando no fundo e no entanto a ser a mesma coisa.
Supunha eu que a única diferença era entre o meio que refractava um e o meio que refractava outro, quero dizer, entre um contexto político-social mais ou menos demo-liberal e um contexto totalitário, entre uma sociedade, apesar de todos os diques e tampões, relativamente aberta e uma sociedade hermética e literalmente fechada.
Supunha eu que "abjeccionismo" seria assim o nome e forma peculiares assumidos pelo surrealismo em vaso fechado.
Perante as afirmações de Pedro Oom, vejo que atribui ele ao "abjeccionismo” um conteúdo (ligeiramente embora) diferente do do surrealismo. Não difere só na forma de parecer e aparecer, mas, no fundo, na própria forma de ser.
Tratar-se-ia de uma heterodoxia, entre as muitas a que, na opinião de Cesariny (3-4-1959, in «Diário de Lisboa») a ortodoxia surrealista teria dado origem.
Deste ponto de vista, porém, restringe-se ainda mais a acepção atribuível ao "abjeccionismo". Se a direcção "abjeccionista" é uma entre os milhares de direcções em que a ortodoxia surrealista pode disparar, dir-se-ia que o "abjeccionismo" é Pedro Oom e Pedro Oom é o "abjeccionismo". Pessoal e intransmissível, a designação teria assim uma amplitude estrita, definida, limitada.
Mas um problema subsiste acreditando, com Cesariny, que o surrealismo, enquanto ortodoxia, fez nascer heterodoxias - algumas identificáveis não já com grupos de indivíduos mas com individualidades, elas só e elas próprias. Acreditando nisto necessário é inventar uma designação global que abranja não só o surrealismo e seus derivados, mas também o surrealismo e seus afluentes, não só o dadaísmo de que, por sua vez, o surrealismo derivou, mas todos os movimentos confluentes ou inter-fluentes, movimentos ou autores que, através da história, representam a anti-História, que, no meio da Abjecção mas contra a Abjecção, mantiveram a palavra de revolta ou de liberdade. Dadaísmo-surrealismo-abjeccionismo: Eis três rios que podem seguir leitos diversos, mas que partem todos da mesma nascente e apontam todos à mesma foz. Outros rios-afluentes haverá, antes, entretanto e depois desses, convergindo na grande Corrente ou Rio Subterrâneo. E para este há um nome: O OBSCENO.

Pedro Oom opõe Angústia e Abjecção e, a meu ver, confunde planos: o psicológico e o histórico.
A Abjecção existe, principalmente, nas instituições e organizações, na sociedade tal qual está e tal qual a foram fazendo.
A angústia, por outro lado, só pode existir na mente individual. A alternativa, pois, parece-me ser não entre conduta abjecta e conduta angustiada, mas entre conduta abjecta (participação individual na Abjecção colectiva) e conduta obscena (oposição estritamente individual à Abjecção colectiva). O índice de obscenidade de um acto, acção ou conduta é que define o seu valor ético.
A angústia, por outro lado, é uma resultante psicológica inevitável em todo o indivíduo que, primeiro se revolta, depois se desespera e por fim se angustia.