sexta-feira, 20 de julho de 2012

SURREALISTAS E NEO-REALISTAS


1-3 -63-03-00-S&S> - quarta-feira, 30 de Abril de 2003-

SURREALISTAS E NEO-REALISTAS

AS DRAMATIS PERSONAE SOB QUE SE METAMORFIZA O ESCRITOR. (*)

[(*) Este texto de Afonso Cautela, que lhe garantiu um lugarzinho no olimpo dos surrealistas portugueses, foi publicado no livro «Surreal-Abjeccionismo», Ed. Minotauro – Lisboa, Março 1963 : o exemplar guardado na «Biblioteca do Gato» é autografado pelo Mário Cesariny, que mo ofereceu e a quem devo a publicação do artigo.


Contra o que poderão ter pensado e escrito alguns doutrinadores do neo-realismo literário português, não é exclusiva dos neo-realistas a consciência de «intervir», em face das duas guerras que arrasaram a Europa e abalaram o mundo. Nem consta que nos neo-realistas essa consciência tivesse agudamente sido posta em romance.
Tanto contribuíram para impedir a guerra, os neo-realistas, como os surrealistas, como os da «arte pela arte». Todos teriam, crê-se, desejado que a guerra não estalasse; sem contar com os Montherlant que têm feito a apologia da guerra, nenhum escritor digno desse nome a deseja, embora nenhum também tenha poder para parar as metralhas ou regular os relógios das assembleias internacionais, de modo a que mais síncronos andem com os apelos e súplicas dos povos reais.
Na esfera puramente literária, a verdade é esta: mais não puderam nem podem, para a resolução das situações concretas, os combatentes neo-realistas do que os surrealistas.
E dentro da literatura (deixemos de fugir às evidências e falemos claro:) se o escritor alistado dos neo-realistas se afirmava pelo élan combativo, pelo ardor polémico, pela crítica social e do social, pela revolta contra as injustiças, contradições e absurdos, valha-nos Deus: então seria o neo-realismo o último a considerar-se «alistado», «engagé», actuante.
No pino da escala estariam os surrealistas cujo ímpeto destruidor foi e é talvez a sua maior ou única virtude; depois os da «arte pela arte» que, pelo menos entre nós, tiveram um trabalho crítico pondo em ordem a nossa pelintrice cultural; e finalmente os neo-realistas, que, em matéria polémica, não passaram do fogoso mas superficial Rodrigo Soares e mais tarde José Marmelo e Silva em fugazes artigos do Jornal de Notícias; em matéria crítica, de Mário Dionísio, Ramos de Almeida e, fora da escola, João Pedro de Andrade; em matéria metafísica, do Vergílio Ferreira.
Se estamos no domínio da literatura, é dela que temos de falar. Se o neo-realista queria agir sobre as condições materiais, utópico e ridículo foi pensar que com uma literatura materialista o conseguia. Se, no fim de contas, era sobre os espíritos e só sobre os espíritos que importava agir, transformando-os, se a única revolução que se pode pedir à literatura é a pedagogia, certamente que a ficção ou mesmo a crítica neo-realista ajudou muito menos ao preconizado progressismo do que as restantes escolas.
Há uma forma de se dizer a verdade sobre as mentiras sociais que nos faz desconfiar: o romance. O romance-libelo - libelo que o autor coloca na responsabilidade de um personagem imaginário, mas não tão imaginário como os inimaginistas do neo-realismo às vezes o conseguem figurar, e a cuja responsabilidade, portanto, se furta - é uma forma degradada da coragem de afirmar, uma «pessoa não jurídica» e, por isso, não resgatável fora dos limites da ficção.
Só existe uma atenuante: se a obra é de facto obra de arte, actuará a longo prazo: o equivalente do libelo sem máscara, da crítica social directamente expressa, à Antero, à Nietzsche, à Fialho, à Prévert, de uma violência diversa do libelo que procura actuar em circunstâncias específicas e circunscritas, digamos oportunisticamente, segundo ou contra determinados quadros sociais-políticos.
Continuamos, todavia, a admirar mais o poeta, o pensador, o crítico e o polemista que sai à rua sem resguardo de um elenco de figurantes (às vezes figurões... ), as dramatis personae sob que se metamorfiza o escritor.
No neo-realismo, onde devia abundar esta literatura crítica, vemo-la confinada a um jornalismo exíguo, quase sempre de um facciosismo aterrador, ou em páginas dúbias de romance (consulte-se, por exemplo, certos capítulos ambíguos de Olhos de Água). Ainda se por uma verificação estatística nos fosse dado averiguar e demonstrar que algo germinara nos espíritos, a partir desses esconsos gritos de alarme e revolta dados nas caves, ainda se se lhes pudesse reconhecer, por aí, às tais ficções, uma função social - vá que não vá.
Mas se nem isso se verifica, o que nos fica do neo-realismo? Fica, quanto a nós, o cuidado de aproveitarmos todo esse material documental, para a sua utilização não já estética mas etnográfica, antropológica, sociológica e psicológica (?).
Se em vez de doutrinadores exaltados e ficcionistas sem assunto, tivéssemos tido uma geração de investigadores-sociólogos (amadores que fossem) pedir-se-lhes-ia um trabalhinho que julgo de certa importância: saber até onde foi a influência das letras neo-realistas, nas suas ambições de formação de uma classe redentora das restantes.
Muito nos elucidaria, mais do que os discursos do género do de Lefebvre, verificar as estatísticas respeitantes por exemplo a: tiragem dos livros neo-realistas, sua expansão entre as camadas que mais interessaria, desenvolvimento da sua função « didáctica» e mesmo revolucionária, percentis das bibliotecas públicas e particulares no que respeita ainda aos mesmos livros, etc.
Um único escritor se entregou a trabalhos concretos de sociologia cultural: Vítor de Sá. Honra e grande lhe seja prestada, por isso. Dá pena que larvadas vocações de homens de ciência (sociológica, psicológica e antropológica, na trindade estabelecida por Jaspers), o rigor da observação experimental (não era o romance para o percursor do neo-realismo, Zola, experimental?), a documentação exaustiva, a paciente recolha do peculiar, do característico, do toponímico, se tenham transviado ingloriamente para a literatura e que uma geração de estudiosos da gleba e da sua gente nos surgisse uma geração, em grande parte, falhada.
Alves Redol começou a sua vida de escritor com um ensaio etnográfico. Teríamos ganho mais com a sua posterior contribuição ao romance?
Na literatura neo-realista vamos encontrar, não há dúvida, um valioso depósito de documentação, a aproveitar pelo futuro sociólogo, mas contam-se pelos dedos da mão aquelas obras neo-realistas que mais do que bloco-notas, mais do que alta reportagem, mais do que quadros e naturezas mortas da vida popular (sem folclorismo, valha-nos isso), sejam obras para viver de vida e alma própria. Satisfazem como meio, mas não como fim, se querem ser obra de arte, mais ou menos teleológica na sua expressão. E creio que todas querem ser obra de arte.
Em suma: o neo-realismo foi necessário mas não suficiente. «Busca aliviar as penas do trabalho e preparar o homem de amanhã para as realizações futuras», diz Jaime Brasil.
Oxalá, oxalá o tivesse conseguido e não estaríamos nós a pôr-lhe a mínima restrição. Seria contudo necessário, para que viesse a desempenhar o papel relevantíssimo que em verdade lhe cabia, que se lhe houvesse dado o complemento que não deu: a literatura pedagógica sobre que os neo-realistas passaram como gato por lebre, atentos como quiseram estar sempre à valorização da sua arte como arte (embora, claro, não «arte pela arte...») e nunca a arte como meio pedagógico de emancipar os homens.
Talvez isso se compreenda: o seu messianismo político ministrava-lhes uma linha irremediável de evolução das sociedades, linha que, contra oráculos e profecias, não se verificou.
Daí que a literatura construída para satisfazer a determinadas condições que não se prefizeram, se visse no vácuo, por a profecia ter falhado, no prazo previsto.
Jaime Brasil viu-o: «Esta (refere-se à desse ano de 1945) «jovem literatura portuguesa» obstina-se, por enquanto, na ficção em prosa, género que, se encontra grande audiência entre os que lêem, não atinge as camadas profundas da população». Atingir as camadas profundas da população: eis o que os jovens escritores de então não fizeram, nem, menos jovens agora, fazem. E o que é pior: o que muitos jovens de hoje se obstinam também em não fazer e em não querer que se faça.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, que lhe garantiu um lugarzinho no olimpo dos surrealistas portugueses, foi publicado no livro «Surreal-Abjeccionismo», Ed. Minotauro – Lisboa, Março 1963 : o exemplar guardado na «Biblioteca do Gato» é autografado pelo Mário Cesariny, que mo ofereceu e a quem devo a publicação do artigo.

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